quarta-feira, 10 de novembro de 2010

"O Último Retrato", Opus 12, by Fábio Zafiro Filho



Sérgio era uma pessoa diferente. Não era uma pessoa normal que trabalha, come, sai para se divertir, anda com mulheres, visita amigos, dança, e faz as milhares de coisas normais diárias do cidadão comum moderno.

Sérgio lia muito, gostava de música e, principalmente, tinha o hábito de observar a vida, de qualquer um. Era um homem que observava os hábitos dos outros, sem fazer avaliações ou filosofar a respeito do que via e sentia. Bastava ver!

Essa esquisitice de Sérgio começou logo na infância, quando observava os amigos e amigas de escola conversando e brincando no pátio do colégio. Observava também os professores, os inspetores de aluno, faxineiros e, até mesmo, o Diretor da escola. Todos eram objetos da observação de Sérgio.

Alguns o achavam maluco, outros pensavam que ele era tímido e alguns poucos acreditavam que Sérgio era um garoto normal. Os professores sempre se questionavam se seus ensinamentos estavam conseguindo entrar naquela cabeça aparentemente doentia, mas nunca tinham certeza.

Sérgio era um dos melhores alunos da classe, mas, se prestava a atenção em dez por cento da aula era muito. Ficava divagando por minutos intermináveis observando detalhes da roupa de uma menina ou no giz que o professor estava usando. Nunca se sabia ao certo em que ele pensava.

Um dia, o Diretor chamou a mãe de Sérgio para uma conversa (o pai de Sérgio havia falecido quando ele tinha quatro anos) com um psicólogo e com uma Assistente Social. Os especialistas concluíram que Sérgio era um menino com uma inteligência muito elevada, com tendências artísticas e que teria muitos problemas para se adaptar com os demais garotos. Segundo os doutores, para Sérgio, toda a escola era fútil e sem qualquer sentido, um local de loucos e de idiotas Afirmaram ainda que o caso dele era delicado e que auxiliariam a mãe e os professores, acompanhando o desenvolvimento do menino.

Eles ajudaram, mas a mãe de Sérgio acabou por conseguir um bom emprego numa cidade próxima e ambos tiveram que mudar para lá. A partir de então, o menino acabou por ficar em casa, só e sem ajuda profissional. A escola da nova cidade, “Escola Municipal 22 de abril”, não aceitou o menino, pois o Diretor da outra escola mandou uma carta informando aos professores deste novo colégio que Sérgio era um aluno que precisava de cuidados especiais, por ter inteligência superior.

O Diretor da “Escola 22 de abril” achou melhor deixar o menino em casa do que aceitar um aluno diferente em sua escola. Preferiu deixar o problema em casa a enfrentá-lo.

O menino acabou por se tornar uma pessoa só, morando com a mãe, que o tratava com muito zelo, embora ainda acreditasse que Sérgio era um retardado ou um louco.

Com o tempo, o menino virou rapaz, e depois, virou Homem.

Sérgio, com seus 32 anos, ainda vive com a mãe, que hoje está com 60 anos, naquela mesma cidade para onde se mudaram. Sérgio não trabalha. Ele apenas lê, ouve música, desenha, pinta, e OBSERVA.

Sérgio passou a fazer da observação uma atividade diária, um prazer sem limites e insuperável.

Logo pela manhã, depois do café, Sérgio sai de casa e começa a caminhar, sem destino. O itinerário era sempre incerto. Várias vezes ele saia e dava voltas pelo quarteirão por várias horas até voltar para casa. Nunca se sabia para onde ele iria.

Andava, andava e andava. Parava aqui, cumprimentava um e outro (Sérgio era comunicativo, mas somente quando lhe parecia conveniente ou quando lhe era prazeroso), comprava um doce, e prosseguia.

Daí ocorre a chance para o primeiro retrato do dia. Sérgio pára e olha.

Era um casal de idosos andando, bem abraçados, como se tivessem acabado de se casar. Ela dava um beijo na testa dele e ele sorria. Ele deveria ter 68 anos e ela uns 62 (Sérgio era preciso em adivinhar idades).

Sérgio começa a reparar nos detalhes. Ele andava com dificuldade, o que poderia ser conseqüência de problemas cardíacos ou de coluna; quanto a ela, deveria estar com uma saúde melhor, pois amparava os passos dele.

A roupa dele devia ser um terno dos anos 70, bem amarrotado, cinza claro. O velhinho usava ainda camisa sem gravata, lenço branco, sapatos pretos, e estava bem perfumado. Em um dos bolsos do paletó havia uma carteira e no bolso esquerdo da calça havia um molho de chaves. Provavelmente iam à Missa das nove horas, na Igreja Matriz.

Já a velhinha ia com uma saia bem longa preta e com uma blusa de lã verde escura. Usava sapatos pretos, um colar de pérolas, uma bolsa de couro e carregava uma Bíblia. Também estava muito perfumada.

Sérgio via que andavam bem devagar como se estivessem apreciando cada passo. Pararam um momento para cumprimentar um casal que passava e continuaram a caminhar. Nesse momento, tendo ao fundo uma árvore centenária e ao lado direito um carrinho de pipoca, Sérgio registrou em sua prodigiosa memória mais este retrato.

Era esse o divertimento de Sérgio: visualizar cenas belas e marca-las na mente, como em um álbum de retratos. Sua mente prodigiosa dava a ele o poder de gravar na memória momentos e cenas cotidianas que para qualquer um seriam inúteis, mas que, para ele, eram o motivo para poder continuar vivendo.

Sérgio era um artista, como previram aqueles especialistas de outrora, mas era um artista que não precisava de instrumentos, pincéis, máquinas, barro, tintas, partituras, palcos, e outros acessórios. Ele bastava a si próprio; era, ao mesmo tempo, o artista e o único espectador de sua obra, e o melhor, o único a julgá-la.

Para muitos essa arte pode soar como algo anormal e surreal, mas a verdade é que Sérgio se sentia muito feliz consigo próprio. Era uma pessoa realizada. Não precisava de mais nada e de mais ninguém, bastava ver e sentir e mais nada.

O arquivo de retratos de Sérgio (se é que assim podemos dizer) é imenso. Tem ele retratos de paisagens, pássaros, crianças, velhos, enfermos, casais, pessoas da família, pessoas ilustres da cidade, cenas de crime, cenas de briga, cenas de amor, e, até cenas de sexualidade.

Quando queria puxar uma dessas cenas ou momentos na memória era só pensar e em segundos estava lá o retrato com todos os detalhes, bem colorido, e perfeito, como uma foto, um filme ou um quadro.

Era uma arte de um homem só. Um só artista, um só espectador, e um só crítico. Era uma arte perfeita, mas que era impossível de ser passada adiante.

Depois dos velhinhos, Sérgio seguiu em frente.

Estava contente consigo próprio, pois tinha conseguido um dos melhores retratos do mês. Começou a caminhar devagar, de volta para casa, como se tivesse acabado de concluir uma obra literária ou pintado um belo quadro.

Resolveu andar até a Igreja. Viu o Padre regando o jardim como sempre fazia logo cedo e o cumprimentou. O sacerdote era o único naquela cidade que parecia entender os pensamentos de Sérgio. O olhar do Padre traduzia compreensão, algo que Sérgio nunca chegou a saber bem o que significava.

Depois de passar pela Igreja e pela Prefeitura, Sérgio seguiu por uma ladeira, que levava até o clube. No meio da ladeira, Sérgio nota uma cena interessante: uma criança brincando com a mãe.


Sérgio se aproxima mais, observa mais detidamente e se assusta. Era a mulher mais bonita que já vira na vida. A criança brincava alegremente enquanto a mãe lhe fazia cócegas e caretas, com a sutileza de uma jovem camponesa.

A beldade tinha cabelos loiros com mechas caindo pelos ombros. O penteado estava desfeito, devido ao vento e aos puxões e empurrões da criança brincalhona. Usava um vestido florido com rosas vermelhas e fundo branco, e sapatos brancos.

Sérgio ficara parado observando, o que chamou a atenção da criança que falou:

-- Quer brincar também?

A mãe falou que a menina não devia ficar abordando estranhos na rua. As pessoas tinham coisas sérias a fazer e não poderiam ficar brincando com ela.

Sérgio não falou nada. Começou a sentir um calor, uma sensação de prazer misturado com inquietação. Não sabia bem o que era. Continuou observando a moça detidamente. Seus traços eram suaves, leves como uma pluma e seus olhos pareciam duas pedras preciosas raras e de elevado valor. Era uma mistura de um ser angelical com uma camponesa antiga.

O coração de Sérgio bateu forte. Emoções começaram a ferver seu sangue e a transformar seu cérebro num tufão de pensamentos. Seus sentidos pareciam estar entrando em colapso total, sentia impulsos sexuais e amorosos com tal intensidade que não sabia mais o que fazer.

Numa resolução bem íntima e intensa Sérgio acabou por retratar na memória a cena da mãe brincando com a filha. Foi algo extremamente difícil naquele momento. Sérgio parecia estar no meio de uma guerra de nervos, com sentimentos, impulsos, instintos e pensamentos se amontoando no seu cérebro. Estava prestes a explodir ou a enlouquecer completamente.


Quando finalmente conseguiu memorizar o retrato, Sérgio marcou bem o momento no cérebro como a conclusão de uma obra suprema e, depois, caiu no chão, desfalecido.

Tinham sido suas últimas emoções. Havia falecido de um ataque cardíaco fulminante.

Mas, Sérgio havia conseguido o que todo artista sempre almeja: a obra prima, a obra suprema, a obra máxima. Tinha conseguido marcar na memória, por segundos apenas, o mais belo de todos os retratos que havia conseguido guardar na vida.

Era o mais belo porque vinha carregado de um amor súbito e ardente. Amor este que provocou emoções extremas no cérebro puro e racional de Sérgio, que, apesar de ser extremamente inteligente, era um iniciante em matéria de sentimentos.

Sérgio acabou por levar sua obra máxima e seus sentimentos elevados e ardentes juntamente com sua alma luminosa, inteligente e amorosa. Ninguém saberá que houve neste planeta artista tão apaixonado.

Com o seu súbito ataque, Sérgio acabou sendo um dos protagonistas de uma bela cena para ser retratada: a criança, pura e casta, sem entender o que acontecera com aquele jovem moço, estava acariciando suavemente a testa de Sérgio, em uma ilusão de que ele poderia estar dormindo.

Este maravilhoso retrato Sérgio não pôde registrar na sua memória, e, infelizmente, apesar da cena ter sido fotografada, a foto não foi utilizada no dia seguinte, na reportagem de capa do jornaleco local, cuja manchete era: MORRE O LOUCO DA RUA COSME.




"Funcionário Público", Opus 11, by Fábio Zafiro Filho


Observando o horizonte! Era isso mesmo que Joaquim queria fazer naquele exato momento: ler um bom livro e, ao deixar a leitura por um tempo, observar o horizonte ensolarado e cheio de árvores de um local qualquer no interior do país.

Imaginava o sol quente e ele na sombra de uma varanda sentado em sua cadeira, lendo um livro qualquer e observando a natureza.

Joaquim estava lá e observava tudo: um boi pastando aqui, uma criança correndo lá. Tudo verde, tudo limpo, tudo sereno. O sol com um leve vento frio. “É, meus filhos, o inverno está chegando” diz um senhor de idade aos netos na rua em frente da varanda. O cachorro late e vem deitar ao seu lado, aguardando a comida e um gesto de amizade. Ele abre o livro e continua lendo, era bom demais. É a vida.

Suas alucinações se desfizeram em fumaça. Uma pessoa ao seu lado espirra forte, lhe jogando alguns respingos de gripe ou resfriado. Tinha se realizado o choque da realidade através de um simples espirro. E a realidade não o satisfazia.

Aquela repartição pública cheia de pobres diabos. Pareciam todos saídos da mesma máquina industrial, da mesma linha de montagem. Eram autômatos que mexiam com papéis, canetas, carimbos, e todos aqueles aparelhos de uso cotidiano. O local tinha cheiro de papel velho, tinta, desodorante de segunda linha e perfume de oitava categoria. Aquele odor nauseabundo e sufocante o atordoava: era uma espécie de ópio..

Mas, aquela pessoa que havia espirrado bem ao seu lado estava lhes dirigindo palavras com muitos gestos nervosos. Parecia com raiva. Ele via a mulher – sim, era uma mulher – mas, parecia que ela estava atrás de uma tela de TV ou de uma parede de vidro. Ele fez um grande esforço e ouviu as lamúrias:

-- Eu venho aqui todo o dia durante um mês e vocês nem querem me atender – dizia ela, com ódio no olhar – Isso é uma palhaçada. E os meus direitos? Por que é que os meus papéis ainda não foram resolvidos?

-- Minha senhora, nós temos que aguardar a assinatura do Diretor, que está de férias. Já lhe disso isso dúzias de vezes e a senhora insiste em aparecer – intercedeu um colega de Joaquim.

Papéis? Por que o mundo atualmente parece reduzido a meros pedaços de papel com carimbos e palavras? Ah, mas agora Joaquim sabia que o mundo iria mudar, pois não serão mais os papéis que vão imperar na face da Terra e sim os números e os programas de computador. E, enfim, os carimbos e a papelada irão para o lixo.

-- Que vagabundagem! O Diretor está de férias – dizia a mulher aos berros – e não tem nenhum idiota que possa assinar estes papéis? Quem ele é? O presidente?

-- O Diretor substituto não quer assinar porque não sabe de tudo o que ocorreu no seu procedimento. Ele prefere aguardar o outro, que sabe de tudo e pode assinar – respondeu o rapaz com indolente calma.

-- Isso aqui é uma porcaria. Todos nós pagamos os salários de vocês e fazemos isso para que uns cretinos saiam de férias e outros imbecis nos atendam como se fossemos mendigos atrás de esmolas – gritava ela – Safados!

-- Minha senhora, eu entendo sua revolta, mas eu sou só um mero balconista, café pequeno. A senhora brigar comigo não vai adiantar nada, porque eu não posso resolver coisa alguma.

-- E quem pode? – perguntou a senhora nervosa.

A revolta da mulher tinha chegado aos ouvidos de Joaquim e ele percebeu que alguém teria que fazer algo para tirar aquela senhora dali. E lá foi ele se meter...

-- Eu posso – falou Joaquim, com calma.

-- O que você é? – perguntou a mulher

-- Sou o chefe dos balconistas – Joaquim era apenas um escrevente, mas vinha em auxílio do amigo e de toda a repartição – qual o problema?

-- São os meus papéis.

-- Já lhe deram a informação

-- Mas, isso tá errado, e os meus direitos?

-- Minha senhora, se fossemos falar em direitos, estaríamos empatados. Já tem alguns anos que não tenho aumento. Tenho direito, é verdade, mas e daí? Eles querem pagar?

-- Eu não estou nem ai para os seus problemas. Eu quero os meus papéis!

-- A senhora acha que basta eu estalar os dedos e “PLIM”, eis aqui os seus papéis? Tudo no Estado – soletrou esta palavra com leve toque pejorativo – necessita de papéis, carimbos e assinaturas. Por mim, lhe daria o que pede agora e estaria terminado, mas os papéis dependem de procedimentos, e os procedimentos dependem de carimbos e assinaturas. Se eu pudesse acabava com tudo isso, mas não sou um revolucionário e tampouco Deus.

-- É apenas um pau mandado

-- Não, sou apenas um burro de carga e nada mais. Faço o que me mandam. Não tenho o direito de reclamar, ao contrário da senhora. E tenho que levar as broncas e xingamentos aqui no balcão, enquanto os chefes tiram férias, folgam, saem para reuniões, viajam para certos congressos e várias outras atividades interessantes.

-- Você escolheu a profissão.

-- Não, eu passei em um concurso, pensando em estabilidade e em ter uma boa ocupação. Não queria ser um burro de carga, sem direito a reclamar.

-- Se não gosta, por que não pede demissão?

-- Tenho dez anos de repartição e trinta e cinco de vida. A senhora conhece algum balconista com trinta e cinco anos de idade?

-- Ta, entendi, o desemprego. É por isso que não sai. Então, você está frito.

-- É o que eu estava falando...

-- E o que eu tenho a ver com isso tudo?

-- A senhora precisa gritar e espernear? Será que não poderia ser gentil com quem não tem culpa nenhuma de estar trabalhando num cubículo destes?

-- Meu querido, eu preciso dos papéis. Posso até ter me exaltado, mas eu ainda continuo precisando deles.

-- Eu sei, mas como vou poder lhe atender? Não depende só de mim. Se dependesse, eu já teria lhe dado quando a senhora tinha iniciado a gritaria. Não gosto de procedimentos tempestuosos. Agora, a informação que posso lhe dar é a seguinte: O diretor que irá assinar a papelada volta na segunda-feira. Ele assinará o expediente por volta das duas. A senhora pode vir na terça e, provavelmente encontrará seus papéis aqui.

-- E se ele não assinar ou resolver pegar um gripe e ficar dez dias de licença?

-- Se eu pudesse prever o futuro, certamente não trabalharia aqui. Não sei o que vai acontecer, mas posso lhe dizer que ele precisa vir na segunda-feira para receber o pagamento e terá que justificar o pagamento com um mínimo de serviço. Então, eu acho que ele irá assinar os seus papéis.

-- Agora entendi. O pagamento – e a mulher começa a rir.

-- Se tivesse falado com mais amabilidade e com sorrisos, talvez eu lhe dissesse isso de pronto, mas a sua ira só prolongou as coisas.

-- É evidente que não tenho garantias, não é?

-- Não posso garantir nada pelos outros, só aquilo que faço ou tenho contato é que garanto.

-- Obrigada. Você me deixou mais segura, obrigada. Qual o seu nome?

-- Joaquim

-- Nome de santo. Talvez seja por isso que você seja tão tranqüilo e transmita tanta tranqüilidade.

-- Talvez.

-- Tenha um bom dia de trabalho – e, depois, sorrindo – de preferência sem pessoas histéricas e com muitas pessoas sorridentes.

-- É difícil. As pessoas vêm descarregar a sua ira em cima de nós e isso ocorre sempre. Pessoas calmas são raras. Mas, obrigado assim mesmo.

Joaquim retornou à sua paz interior, com seus horizontes infindáveis e suas leituras intermináveis. Imerso em sua vida particular e estritamente pessoal, tudo lhe parecia mais fácil. Tinha temor de voltar à realidade e de voltar ao mundo real, que lhe parecia tão artificial e irreal.

A mulher não voltou na terça-feira, como Joaquim recomendara, mas sim na segunda-feira, e acabou por fazer outro tumulto. Nesse dia Joaquim tinha ido levar alguns malotes para outra repartição. Ficou sabendo, depois, que a moça tinha sido levada pelos seguranças, pois a mesma tinha ameaçado um dos diretores com um grampeador.

A repartição toda contava o caso misturando horror e humor. Uma cena pesada e de humor negro. Ela foi levada para casa e seu advogado (calmo e sereno) solucionou o problema, embora tenha ameaçado – também com muita calma – representar o diretor perante a autoridade competente em virtude da negligência. O processo da moça, curiosamente, tramitou rapidamente e tudo ficou resolvido.

Joaquim reencontrou a moça dias depois em um boteco, depois do expediente. Ela estava comprando um cigarro e logo o reconheceu:

-- Fiz outro ataque lá no seu serviço.

-- Fiquei sabendo.

-- Consegui os papéis. Um advogado amigo meu disse que isso precisava de certa persuasão.

-- Ele foi bem persuasivo com o diretor.

Ambos riram.

-- Espero que possamos ser amigos – disse ela

-- Claro.

Depois se despediram e Joaquim nunca mais viu a moça. Ele soube, pela imprensa, que ela tinha sido presa por matar um guarda de trânsito. O policial a havia multado por ultrapassar um sinal vermelho e ela afirmava que estava indo salvar um amigo que tentava o suicídio.

De um suicídio inexistente ela acabou cometendo um homicídio, atropelando o guarda. Moça exaltada essa, não?

Mas, Joaquim não ligou muito quando leu a noticia no jornal. Era mais uma pessoa atrás da parede de vidro que sumia da sua vida, tal como havia entrado: como um cometa.

E, então, Joaquim, voltou para seu mundo interno e infinito, e passou a admirar a beleza de um cometa. Um cometa que estava no céu da sua consciência.

E tudo continuou como antes, como sempre. E tudo assim será.

domingo, 7 de novembro de 2010

"O Encontro", Opus 10, by Fábio Zafiro Filho


Luana estava pensativa: Iria só ou chamaria a Cibele para ir com ela? Aquele convite anônimo era tão inesperado e, ao mesmo tempo, muito excitante! Quem era aquele admirador, anônimo e secreto, que lhe mandava flores tão lindas e, no cartão, falava coisas tão doces e ainda a convidava para ir ao cinema?

Ela tinha recebido as flores em seu trabalho e as meninas tinham ficado com inveja. Nenhuma delas ganhava flores dos namorados, noivos ou maridos. E justo a única funcionária solteira da loja havia recebido flores tão lindas! Até a dona olhava para ela com ares de “O que essa garota tem que eu não tenho?”.

Quem seria o admirador?

Ela não tinha a menor idéia.

Alguém da loja?

Algum vizinho tímido?

Sim, ela já tinha recebido flores varias vezes em sua vida. Mas, geralmente sabia muito bem que as enviava, mesmo quando se tratava de um admirador secreto. Todos esses pretendentes eram previsíveis demais e ela não demorava mais do que algumas horas para saber quem era a pessoa.

Mas, dessa vez as coisas eram bem diferentes. Ela estava solteiríssima e querendo um período de paz e sossego, principalmente depois do relacionamento turbulento que manteve com o Caio. Não tinha ninguém em vista e não tinha notado nenhum admirador, secreto ou não, a sua volta.

Quando contou a história para a Carla, essa amiga disse que achava que era o próprio Caio querendo dar uma de romântico. Era possível. Mas, a chance de isso acontecer era remotíssima. Caio era um adolescente de 30 anos. Não tinha maturidade e nem sabia o que era romantismo.

O admirador tinha marcado o dia e horário que ambos se encontrariam para ir ao cinema. E se fosse um tarado? Um assaltante? Luana também pensava nessa possibilidade. Por isso tinha pensado em levar Cibele.

O interessante é que no convite o admirador falava de alguns detalhes que poucas pessoas sabem. Mencionava, por exemplo, as reais causas do rompimento com o Caio, os perfumes preferidos dela, a sua cor predileta, e outros fatos desconcertantes.

Que era alguém próximo era óbvio, mas quem?

Havia algo de pessoal, de próximo, de afetuoso naquele convite.

Isso a inquietava.

Quem era tão íntimo dela a esse ponto?

O encontro seria HOJE, e daqui a três horas. Precisava decidir se levaria ou não Cibele.

Dúvidas. Dúvidas. Por que as mulheres sempre estão tão cheias de dúvidas? Ligo ou não ligo?

Ligou.

- Alô, Ci?

- Oi, Lu, tudo bom?

- Você tem algo para fazer hoje?

- Não, por quê?

- Eu recebi um convite de um admirador secreto para ir com ele no cinema e estou com medo de ir sozinha.

- Você quer que eu vá para segurar vela? Nem pensar

- A gente vai até o cinema. Se estiver tudo bem, você inventa uma desculpa e vai embora.

- Piorou. Vou sair sozinha para levar você ao cinema?

- Ta, então leva mais alguém.

- Ta bom. Vou com a minha prima. Se o cara for legal, eu dou uma desculpa e vou com ela naquele barzinho perto da casa do Lelo.

- Brigadão, Ci.

- Vou cobrar com juros

- Pode cobrar sim.

Luana desliga o telefone e fica mais tranqüila sobre a situação.

Já poderia se vestir e se preparar para o grande evento.

Era estranho. Ela já teve alguns namorados. Mas, esse convite a deixava como uma menina que ia encontrar o primeiro namorado em frente da sorveteria.
Não sabia que roupa usar. Experimentou várias e nenhuma ficava legal.

Depois de muita hesitação, ela conseguiu tomar uma decisão.

Perfumada, maquiada e vestida para matar.

Estava se sentindo uma leoa!

Saiu.

Foi dirigindo até a casa da Cibele (que não tinha carro), passaram para pegar a prima dela, Vânia, no outro lado da cidade, e seguiram para o grande encontro.

Chegaram ao cinema no horário exato.

Ficaram na porta, que era o local marcado para eles se encontrarem.

As três ficaram observando os transeuntes, na tentativa de identificar o admirador.

Nenhum daqueles idiotas tinha cara de “admirador secreto”. No máximo, tinham pose de “play-boy do ano”.

Passou um rapaz desconhecido e as três viram o cara passar, dar um sorriso e ir dar um beijinho no rosto de uma adolescente ali perto. Ainda bem, porque era feio que doía.

O tempo passou e nada do admirador chegar

Todos já tinham entrado e as três procurando o “Don Juan”.

- Bom, temos duas opções: Ele não veio ou está lá dentro disfarçado – resume Cibele

- Vocês podem entrar comigo? – indaga Luana, preocupada.

- Claro, não perco isso por nada – respondeu Vânia.

- Vamos ver então o filme – responde Cibele.

Assistiram ao filme todo e nada de o admirador aparecer.

Saíram, procuraram, vasculharam tudo sem qualquer êxito.

- Deve ser um palhaço – diz Cibele, irritada.

- Talvez ele tenha tido um contratempo – diz Luana, sem graça.

- Dar um bolo desses, sem nem avisar – continua Cibele.

- Avisar como? Com outro bilhete e flores?

- Sei lá, ele que se virasse. Foi ele que inventou essa história toda, não você.

- Vamos ver se ele se justifica amanhã ou nos próximos dias

- Só você para defender esse cara, Luana!

Cibele estava revoltadíssima.

Luana caminhava calada, triste.

As três entraram no carro, deram uma volta, foram no barzinho e depois voltaram para casa.

No dia seguinte (um sábado), Cibele ligou para Luana:

- Lu, estive pensando sobre ontem.

- O que, Ci?

- Talvez o cara tenha se incomodado com a nossa presença lá

- Também pensei nisso

- Por que você não vai sozinha da próxima vez?

- Não to gostando desse encontro às escuras, Ci. To com receio!

- Receio do que?

- Você sabe. Hoje tem louco pra tudo. Não confio em caras que mandam convites assim.

- Tudo bem, da próxima vez você vai e eu fico observando vocês de longe. Se ficar tudo bem, você me dá um sinal e eu vou embora. Se você não estiver segura, você finge que me encontrou e ai eu fico junto com vocês, segurando vela.

- Ai, você faria isso por mim?

- Claro, né? Já segurei vela antes. Não se preocupe!

- Obrigada.

- Por nada, querida, agora vamos ver se ele se manifesta.

- Assim que eu souber de algo, te aviso.

No dia seguinte o “admirador secreto” manda para Luana não um, mas três arranjos de flores e uma caixinha de bombons muito finos – eram dinamarqueses. Ele se desculpava pela gafe e agora a convidava para irem, no dia seguinte, a um restaurante chique em um bairro nobre da cidade. Luana teria que espera-lo, novamente, na frente do cinema!

Todas as mulheres na Loja ficaram com a mais sincera inveja.

Luana ria, com gosto, das suas colegas de trabalho.

Ela estava feliz! A inveja de outras mulheres não poderia apagar o brilho da sua felicidade.

Uma das meninas lhe disse que nenhum namorado lhe dera bombons tão finos. Outra ficou chorando porque o seu marido nunca lhe dava flores.

E para piorar esse estado de espírito das funcionárias da loja, o admirador foi mais ousado ainda: enviou um perfume francês caríssimo, com um bilhete perfumado onde se lia uma inspirada poesia.

Isso fez com que Luana ficasse em êxtase e suas colegas furibundas.

A Cibele ficou feliz pelo bilhete e pelos presentes.

- Lu, esse cara é demais. Agora a coisa vai

No horário marcado, lá estava Luana. Vestiu-se como uma princesa: uma amiga emprestou um vestido muito luxuoso, estava usando jóias, passou o perfume que o admirador lhe enviara, se maquiou. Em suma: ela estava pronta para qualquer príncipe encantado chegar.

Cibele, como combinado, estava por perto.

Diversos homens passaram por ali. Uns estavam com a família. Outros sós. Havia alguns idosos com algumas crianças. Dos solitários, alguns pareciam gays e outros eram escrotos.

Nenhum deles parecia o príncipe dos bilhetes.

E, efetivamente, o príncipe não chegou!

Cibele estava transbordando raiva:

- Esse cara é um cretino, Lu

- Acho que ele quer me deixar doidinha

- Já está te deixando...você sempre defende ele.

Luana fecha a cara.

- Acho que nunca tive tantos presentes assim

- Talvez ele queira te seduzir com presentes para depois fazer uma entrada triunfal.

Ambas riram

- Acho que é bem por ai, Ci

- Tem homens ricos que não querem uma mulher, querem uma platéia para aplaudi-los só por eles serem ricos.

- Não acho que esse seja tão bobo assim

- Não temos como saber, Lu.

- Vamos esperar os próximos bilhetes...

Ambas se despediram.

Luana voltou para casa. Estava felicíssima.

Ficava pensando na inveja das meninas na loja, na preocupação da sua amiga Cibele e em quem seria o seu admirador secreto.

Depois de tomar um bom banho, ver TV e ler um livro, Luana sentou-se na cama e passou a escrever em uma folha colorida de papel de carta, com profunda emoção:

Querida Luana.

Não pude ir ao nosso encontro ontem. Espero que tenha adorado o perfume que te mandei, meu amor. O poema fui eu mesmo quem fiz. Vou ter que viajar amanhã para Paris. Daqui a dois meses voltarei para te encontrar e provavelmente te levar ao altar.

Espero que você goste dessa caixa com bombons franceses.

Beijos carinhosos e sinceros do seu grande admirador



Luana dobra o papel, coloca em um pequeno envelope. Ela irá levá-lo no dia seguinte à pequena loja que fica do outro lado da cidade, se apresentará como Dora, comprará os bombons e pedirá para que sejam entregues juntamente com o envelope para sua amiga Luana em seu local de trabalho.

Luana suspira e sorri.

Como tinha dito para Cibele, tem louco para tudo nesse mundo.

Luana era louca?

Se ela era louca, era certo é que era uma louca feliz.




terça-feira, 2 de novembro de 2010

"Solilóquio Noturno nº. 02", Opus 09 by Fábio Zafiro Filho

Outra noite. Nova jornada para o “sono dos justos”.

Estou aqui deitado em minha velha e confortável cama e volto a pensar. Sim, o velho e bom pensamento. Um dos bens mais preciosos do ser humano.

Para que pensamos? Para que vivemos?

“Para alcançarmos a felicidade”, responderiam alguns. Mas, o que é a felicidade?

Vários pensadores, filósofos, e psicólogos, escreveram inúmeros livros, artigos, e teses sobre isso. Como não sou um intelectual, posso tentar meditar sobre esse tema, e o faço sem maiores conseqüências e responsabilidades.

Então, o que é felicidade?

Quando falamos em felicidade associamos conceitos geralmente materiais e ambições pessoais. Mas, essas associações geralmente se prendem a quatro aspectos principais: ao sexo, à afetividade, ao poder e ao conforto material.

Portanto, segundo boa parte da raça humana, será feliz aquele que possuir um ou mais desses elementos acima mencionados. A mulher que busca a felicidade no casamento procura, na verdade, afetividade, sexo, e, dependendo do caso, conforto material. O funcionário que pretende ver a felicidade em uma promoção busca o conforto material e o poder. E por ai vai.

É um erro acreditar que a felicidade está em algum objeto específico, seja ele qual for. Não é o objeto em si que traz a felicidade, mas sim o sentimento que se desperta em cada pessoa por buscar aquele determinado objeto.

A felicidade, portanto, é uma característica, uma qualidade, um atributo do ser humano.

Temos que diferenciar a felicidade de outros estados que lhe são bem parecidos como a saciedade, a tranqüilidade, a satisfação, o conformismo e a simples alegria.

A saciedade é apenas a satisfação das necessidades dos instintos, incluindo aqui o instinto sexual. Os instintos são as forças psíquicas mais poderosas no homem e a sua satisfação é a busca atávica do ser humano. Quando o desejo sexual é saciado, tem-se uma satisfação, um prazer corporal. Contudo tal prazer é fugaz, porque o processo é sempre cíclico. A saciedade, desse modo, se distingue da felicidade justamente por não ser plena.

A tranqüilidade e a busca pela paz não podem ser confundidas com a felicidade. Estar em paz não é ser feliz ou ter alcançado a felicidade. Pode-se estar em paz, mas ser infeliz. Podemos ser tranqüilos, mas sermos infelizes. Na verdade, aqui há uma inversão, tomando-se geralmente a causa pelo efeito. A formulação mais exata é: A felicidade é que gera tranqüilidade.

O conformismo - a resignação - também não se confunde com a felicidade. A renúncia é um estado de omissão, mesmo que tenha os mais nobres sentimentos. Podemos nos conformar com nossa situação de penúria e, ao mesmo tempo, sermos infelizes. Novamente aqui a inversão de raciocínio: A felicidade é que gera a resignação, a renúncia e isto por ser ela um estado pleno.

A satisfação envolve os anseios do ser humano: relacionamentos, trabalho, saúde, êxito pessoal, é demais aspectos normais da vida humana. Estar satisfeito é ter conseguido o fim a que se propôs: casamento, uma promoção no emprego, a cura de uma doença, uma vitória profissional. Por mais que a satisfação traga alegria, ela não traz, necessariamente a felicidade.

A alegria, por fim, reflete bom humor apenas. Sorrimos e rimos, refletindo nossa alegria para os outros. Mas, ao estarmos alegres e sorrirmos não temos, necessariamente, felicidade. Muitas vezes o sorriso é apenas estético e o riso é tão somente uma máscara para encobrir dores e tristezas interiores. Novamente inverte-se e toma-se a causa pelo efeito: a felicidade gera alegria.

A felicidade está acima de tudo isso! É a causa de todos esses efeitos.

Para atingirmos este estado de êxtase, que é a felicidade, temos que abandonar qualquer noção de objeto exterior. A felicidade se busca no íntimo do ser e não no exterior. É um problema íntimo.

E como atingi-la?

O primeiro passo é justamente ter a consciência exata de que o que se procura não está no mundo exterior. Não procuramos alguém, não procuramos algo. Se não procuramos nenhum objeto exterior para sermos felizes, então o valor deles deve ser redimensionado, para não confundirmos a afeição por simples objetos ou pessoas com a própria felicidade.

A partir do momento de que damos às pessoas, às coisas e ao mundo exterior de um modo geral o seu devido valor sem confundi-los como alvos de nossos anseios para nos tornarmos felizes passamos a observar que não necessitamos tanto do mundo exterior, e que ele é necessário, mas não é um fim em si mesmo!

Não vamos em busca de um relacionamento achando que ele nos trará a felicidade absoluta. Não corremos atrás do dinheiro, poder, fama, e outros bens do mundo humano porque sabemos que eles são úteis, têm seu valor para nós, mas não vivemos em busca deles, como se consubstanciassem a própria felicidade.

Com essa mudança de valores, passaremos a observar mais para dentro de nós mesmos.

Onde achar a felicidade, escondida dentro de nós mesmos?

Depois de eliminarmos a busca por um objeto, precisamos definir que a felicidade não está no fim, e sim no processo, na busca, no caminho.

Se a felicidade não está em um objeto no mundo exterior, ela não está no fim, no alvo a ser alcançado.

Esse é o erro central de quem vê a felicidade no instinto sexual. Uma vez saciado, esse instinto se renova sempre. E o instinto sexual visa necessária e imperiosamente à satisfação, ao prazer sexual. Aqui a ênfase é no objeto.

O mesmo se pode dizer sobre quem vê o objetivo da vida na vontade de poder. O poder é transitório, e não perene e absoluto. Então haverá uma busca incessante por poder. E ai parte-se para o eterno retorno da vontade de poder em um ciclo sem fim. Por mais que essa idéia tenha suas bases no instinto mais animal do homem e seja, em parte, coerente, é certo que o homem que busca vontade de poder poderá ser um homem poderoso, auto-suficiente, mas infeliz.

Por que a felicidade não é um fim e sim um meio? Simples. Se ela for um fim, acaba por ter um termo. Exemplifiquemos: Se a pessoa vê no dinheiro a sua felicidade, ela sempre irá querer mais dinheiro, porque a conquista de um determinado valor esgota a sensação de felicidade.

A felicidade é estar em busca de algo. Mas de que forma fazer essa busca?

Alguns pretendem encontrar a felicidade no meio-termo. É uma resposta parcial, pois, ao mesmo tempo em que há como admitir que não exista felicidade nos extremos, é certo que uma pessoa pode ser infeliz caminhando mesmo sempre pelo meio-termo.

O meio-termo é um conceito muito mecânico para se falar em um estado que é basicamente subjetivo.

Sim, a busca se inicia no sujeito, em quem está procurando a felicidade. É nele que está a chave para descobrirmos o meio onde está a felicidade.

Neste ponto surge uma importante indagação: A Felicidade é absoluta ou relativa? Existe uma Felicidade absoluta e geral ou a Felicidade é relativa e pessoal, sendo diferente em cada pessoa?

A resposta me parece ser um pouco complexa. Existe a Felicidade, como conceito absoluto, abstrato e geral e existe a Felicidade, tomada no aspecto individual, concreto e pessoal. São duas acepções da mesma palavra.

A acepção que nos interessa é a pessoal, relativa, individual e concreta.

Essa Felicidade muda de pessoa para pessoa. As pessoas são felizes de maneiras diferentes.

Geralmente a felicidade está ligada ao elemento afetivo-emocional do ser humano. Ela atinge sua sensibilidade em uma região que envolve o amor fraternal, a religião, as artes, o contato com a Natureza, e outras categorias deste mesmo sistema.

Vejo a felicidade, portanto, como uma sensação de plenitude emocional e espiritual.

Houve no passado quem dissesse que a felicidade fosse uma condição negativa. Sim, ela, na maior parte dos casos, é negativa. Contudo, a busca pela felicidade de uma forma mais correta pode ampliar os seus limites transformando-a de exceção para regra.

Como fazer isso?

Imagine-se que uma pessoa ficou plenamente feliz quando contemplou um horizonte belo ao entardecer. O horizonte não foi a causa da felicidade. Ele apenas a despertou. A pessoa aqui deverá procurar sentir a mesma intensidade de emoção em todas as imagens naturais belas que encontrar. É uma forma de expandir a emoção sentida.

E isso pode ser conseguido em qualquer área que envolva sentimentos, pois felicidade é o êxtase do sentimento. É a plenitude do espírito e da emoção.

Todo tipo de sentimento que nos traz uma parcela de felicidade pode ser expandido. Se eu sinto felicidade quando estou trabalhando em determinada tarefa, posso, gradativamente, me sentir feliz trabalhando em todas as tarefas. Se eu sinto felicidade, quando estou com a pessoa amada, posso sentir felicidade quando estiver com outras pessoas também.

A felicidade, desse modo, está, ao mesmo tempo, no sentimento que o sujeito sente por determinado objeto e no processo que o faz sentir daquele modo. Se ele puder transferir o processo para outros objetos, será feliz em outros momentos da vida.

Sendo assim, a Felicidade pode estar em qualquer canto: Quando uma criança brinca com um peão, quando um namorado beija a namorada, quando um escultor termina uma obra, quando alguém ouve uma música, entre inúmeras e infinitas situações possíveis.

Felicidade é um estado psicológico, é um êxtase de sentimentos. Cada pessoa e responsável pela sua própria felicidade, pois somente ela sabe o que a faz feliz. É um caminho individual.

Concluindo, pelo menos por ora, a Felicidade, para mim (simples pensador notívago e quase dormente) surge como um sentimento de um sujeito por um determinado objeto, mas esse processo, essa busca da pessoa pelo objeto que lhe deixa feliz é transferível e ampliável para outros objetos. A Felicidade reside no sentimento que liga a pessoa ao objeto e na busca pelo objeto.

Aos críticos: Sim, deixei questões abertas. Sim, vou prosseguir nas elucubrações noturnas, mas outra noite. Sei que existem várias questões adjacentes que surgem com esses meus pensamentos vagos. Aguardem!

Vocês me acusam de confuso, obscuro e fragmentário. Sim, é assim que sou. Culpa do Morfeu: O sono não me permite prosseguir e embaralha os meus pensamentos.

Coloquem o meu amigo no banco dos réus junto comigo!

Mas, ele vem chegando...

Depois de tantos conceitos e teses, o grande deus Morfeu vem caminhando com sua legião de soldados romanos com uma bandeira dizendo: “Venha para o meio reino. Lá está a Felicidade”.

Talvez ele tenha razão!

Morfeu é um bom camarada

Despeço-me.

terça-feira, 13 de julho de 2010

"O Velho e o Rapaz", Opus 08, by Fábio Zafiro Filho



-- Quem somos? Para onde vamos? Eis perguntas cujas respostas sempre são incansavelmente buscadas e nunca encontradas...

-- Cala essa boca, véio

O Bar estava cheio e o velho bêbado – que vinha toda segunda-feira falar sobre filosofia, religião e política - estava deixando todos doidos de ódio.

-- Calar? Quem sois, ó alma negra? Viveis ou apenas imitais os demais? Quem fala o que sabe expõe a sua mente aos outros e você, terá mente a expor?

-- A sua mente deve ser uma mistura de pinga com carne de gato, fedida e podre. Só sai bobagem. Anda, vê se acha o sanatório de onde você saiu e pára de nos atormentar.

-- Pinga? Minha mente tem pinga? Bom, pelo menos tem alguma coisa. Prefiro ter pinga a não ter nada...

-- Fica quieto! —o marinheiro já estava a ponto de levantar do banco e esmurrar o bêbado.

O bêbado riu, cambaleou até a porta e recomeçou seu discurso:

-- Bêbados! Eis a alma do homem: uma alma embriagada de prazeres idiotas, ódios infantis, interesses gananciosos. Homens são a escória do mundo...

-- Você é um deles, pingão...

-- E você também —respondeu o bêbado – mas não tem consciência da espécie que somos.

-- Há homens diferentes. Eu sou um homem são, viril e trabalhador. Você é um fraco, perdulário e perdido...

-- Homem é homem em todo o lugar e todos são fracos...

-- Você vai dizer que é a pinga que os faz fortes?—replicou um rapaz

-- Ela só atenua os sofrimentos... —diz o bêbado.

-- Os seus e os da humanidade toda? Você carrega a humanidade nos ombros?

-- Sou um membro dela... —diz o bêbado, que pára e olha atentamente para o rapaz...

-- E, por isso, pode achar que a pinga consegue atenuar os sentimentos de todos? – continua o rapaz...

-- Pelo menos os meus...

-- É. Vejo que você se dá muita importância, a ponto de poder julgar toda uma espécie. .Quem é você?—prossegue o infatigável rapaz...

-- Bravo, uma briga de intelectuais: um cheirando a pinga e outro cheirando a leite... —grita o marinheiro e o bar todo cai na risada.

O rapaz e o bêbado nem ouviram a bobagem dita pelo marinheiro...

-- Sou um homem amargurado - diz o bêbado.

-- E culpa a humanidade pelos seus erros? Ou pelos erros dos outros? – replica o rapaz.

-- Não culpo ninguém. Só digo que os homens são fracos. São uma escória...

-- Com que legitimidade? Quem é você para julgar toda uma espécie animal somente pelos seus erros e dos que lhe são próximos?

-- Com a legiti... —o bêbado gagueja – titimidade de ser um homem e ter vivido muito...

-- A experiência traz a sabedoria? Mas, qual experiência? A sua? Só a sua? Como pode saber se os seus erros e os seus acertos representam realmente uma síntese dos erros e acertos da humanidade?

-- “Sou humano e nada do que é humano me é estranho” – disse o bêbado, como se falasse uma oração...

-- Grande pensamento, mas não é a resposta correta á minha pergunta. O fato de não estranhar o comportamento alheio não quer dizer que você possa conhecer profundamente toda uma espécie a ponto de julgá-la... — o rapaz para e sugere – por que não procura reduzir o seu julgamento aos homens que você conhece?

-- Todos os homens que conheço são escória... - diz o bêbado, cuspindo.

O rapaz, calmo e paciente, senta e cruza as pernas, bebe um gole do seu suco e prossegue:

-- Seu pai e avô são escória?

O bêbado deu uma risada forçada e diz: “Meu pai é toda a escória e os excrementos do mundo”.

-- Por quê? – questiona o rapaz, fitando os olhos do bêbado.

-- Ele batia na minha mãe e nos meus irmãos. —responde o bêbado.

-- E ele representa toda a humanidade para você? Você acha que todos os pais são iguais? – pondera o rapaz.

-- Não, mas o meu era escória...

-- Não, meu caro, o seu mundo é que é escória... —disse o rapaz, pausadamente.

-- Que mundo? – perguntou o bêbado.

-- Você criou um mundo particular, todo seu, e a ele você reduziu toda a humanidade. Nesse seu mundo estão todos aqueles que te ferraram, que te machucaram, que não te quiseram e também os que te amaram e amam. Neste seu mundo, você é o único juiz, pois ninguém mais sabe sobre os seus sentimentos e sobre a sua vida, seus erros, seus vícios, suas virtudes e sobre o seu passado. Você é o Juiz Supremo. Pode decidir que a humanidade é podre, ou perdoá-la. —conclui o rapaz.

-- Belas palavras, mas não é a verdade, a verdade é que você faz parte de uma espécie falida.

-- Não, a nossa espécie não é falida. É a sua mente que a tornou insípida, negra, salgada, amarga. Aonde os outros sentem o gosto doce, você encontra o fel. A sua humanidade esta falida, a humanidade que está dentro da sua mente.

-- Você é um cretino.

-- No seu mundo, todos os homens que lhe digam que a humanidade é boa ou que a vida é bela não passarão de cretinos. Ora, você já decidiu que a humanidade deve ser condenada, sem recursos, sem piedade, sem misericórdia. Foi você quem acabou com o mundo e não os homens.

O bêbado sentou no chão e disse:

-- Os homens me ferraram e a vida os ferrará. Os homens são o fim.

-- Não seja tolo! Você pode combater tudo. Basta ter consciência disso. Não seja mais um pobre diabo.

-- Não sou um pobre diabo. A humanidade que é a praga, a erva daninha...

-- Meu caro, -- diz, calmamente o rapaz, pondo a mão no ombro do bêbado – e o que você é?

-- Já não sou mais ninguém.

O bêbado acaba dormindo e o rapaz sai do bar depois de tomar o seu suco. Deixou algum dinheiro para que os marinheiros levassem o bêbado para sua casa.

-- Todo esse dinheiro só para levar um idiota desses para casa. Devia é largá-lo no esgoto — resmunga um marinheiro contando o dinheiro.

O dono do bar ajuda a tirar o bêbado do bar e, ao fechar as portas, diz:

-- Levem esse pobre diabo com cuidado.

-- Por quê? E ele lá merece? – responde o marinheiro

-- Merece sim. Ele é o pai daquele rapaz. Vive perambulando pelas ruas. Era um bom homem e bom funcionário público, mas se enterrou no vicio. O filho tem pena dele, mas, o máximo que ele consegue é discutir com o pai bêbado e dar dinheiro para levarem-no para casa.

-- Ele é um bom rapaz —reconhece o marinheiro – mas, por que ajudar um pai que quer ver o mundo pegando fogo?

-- Porque o pai, todo dia, vai ao cemitério. E quando se depara com o túmulo da mulher, volta para casa chorando e diz ao filho: “O meu mundo era ela, hoje o meu mundo é o inferno” e sai para os bares, pregando e discutindo, atacando a humanidade, Deus e os políticos Isso acontece todo santo dia e cada dia da semana ele discursa em um bar diferente. Amanhã será no Bar do Neco, ali na esquina...

-- Ao chegarmos na casa do rapaz, devolverei o dinheiro – disse o marinheiro, com lágrimas nos olhos – ele precisará mais do que eu.

-- Você é um bom homem e agora pegará seu barco e irá embora, mas, a vida para o rapaz será sempre esta. Consegue imaginar?

As lágrimas foram sufocando o pobre marujo.

E foram andando, carregando aquele velho sujo e fétido pelas ruas do porto naquela madrugada de maio. O marujo ia chorando e o dono do bar contando outras histórias daquela família. Os demais seguiam em silêncio.



sábado, 10 de julho de 2010

"As Crônicas de “J”, Opus 07, by Fábio Zafiro Filho


1 ---


A você, meu caro colega, que irá ler essas bobagens, não pense que vai ler uma crônica de um autor de crônicas qualquer. Sou um escritor especial.

Trata-se apenas de uma crônica da vida urbana.

Não pense que irá encontrar algo agradável, porque eu não sou nem ao menos tolerável.

É uma história e nada mais. Quem sabe se é realmente uma crônica? Afinal, o que é uma crônica? Quem liga para rótulos?

Resolvi ser mordaz. Mostrarei a realidade!

O título é realmente uma bosta: “O Caminhante da Noite“. Poderia ser a história da vida de um guarda noturno, ou a saga de um vampiro. Rótulos novamente.

Chega de frases inúteis!

20.03.1985

J.




O Caminhante da Noite


Ele sai de casa para entrar no domínio da noite da CIDADE.

Pede permissão.

E começa a sua longa jornada de encontro ao organismo vivo da noite urbana.

A noite é fria e lhe abraça. Ele a rejeita como rejeitara na noite anterior o afago da puta.

Ele foge de algo que pensa que sabe o que é, mas ... bem ... é melhor nem pensar... Só andar, andar e andar.

Na primeira esquina, surge a primeira dúvida. Um ônibus pára e dois idiotas gritam como dois apitos em forma de cretinos. Por quê?

Deve haver motivo para o grito e para a existência dos cretinos.

Motivos? Quem precisa deles?

Continua a caminhar...

A cidade avança dentro do seu cérebro. Os prédios vêm marchando, como se fossem duas fileiras de soldados gigantes. Os carros parecem cargas elétricas desordenadas. As pessoas, reles formigas. O mundo vive e a noite impera.

O caminhante filosofa e cria suas poesias medíocres, que poderiam ser escritas por qualquer bêbado criado na noite urbana.

Tiros?

Uma formiga humana cai morta na sua frente. O sangue inunda seus pavilhões auriculares. Ele vê, então, o que sobrou do que um dia foi alguém.

Dor?

Não sente pesar. É só mais um evento comum na noite urbana.

O caminhante volta a andar. Só observa. Não questiona.

A cidade vive e a noite domina. Que pode ele fazer sobre isso?

Putas...e mais putas...

Travestis: homens que são mulheres. Atentado contra Deus? Pode até ser, mas não é atentado contra o domínio da noite.

Dor? Pobreza?

Mendigos...os excluídos...os inválidos.

Moeda? Tome-a... Para comprar o que comer....ou.....o que te faça esquecer.....A noite te dá....te toma.....te mata.

Estrelas... A Lua... Meras luzes da Noite... Meros reflexos do que foi o dia. A noite é bela, mas pode ser suja... Depende dos olhos que a enxergam.

O caminhante não compreende a noite. Ele somente observa os seus elementos. Mas, Filosofia é coisa para gregos e alemães.

A noite é bela? Pois bem, que seja! .A cerveja e a pinga transformam as mentes, e deixam as pessoas românticas... Poesia é uma brincadeira para bêbados, intelectuais e professores.

Caminhante não é filósofo e nem poeta. Ele apenas observa... E só.

Sexo...

Homens e mulheres em busca de satisfação corporal e, talvez até, romântica...

O caminhante prossegue a caminhada

Homens amando homens? De novo?... Não... Nada contra. É a vida... Hormônios... Intelecto... Só quem pensa pode assumir uma opinião, seja ela qual for...

Sexo e dinheiro... Seria podridão? Talvez

Sexo, dinheiro e necessidade fazem a podridão virar uma atividade profissional!

Sexo... Homens e mulheres... Terrores da noite?

Casais se amando! Naturalidade... Uma beleza escondida na noite urbana.

A noite avança sobre o caminhante.

Drogas! Território podre.

Fumo?

Pó?

NÃO. Melhor andar e observar... Assim se exercita o cérebro e o espírito.

Fugir? Não, o melhor é caminhar... Gera frutos.

Esquecer? Também não... Apenas observar... E acabaremos sempre por nos lembrar de tudo.

A jornada está no fim.

O caminhante retorna para sua casa.

Viu, ouviu, mas... Não sentiu.

Os sentimentos aflorarão... Depois.

O caminhante entra em casa, fecha a porta do quarto, senta, e chora.

Depois, raciocina, levanta e ri... A noite é uma educadora natural da alma humana...



2....



Anseios de um monstro! É isso que este texto idiota quer mostrar. Nada além disso.

O monstro faz e quer continuar a fazer. O Mundo não aprova sua conduta, mas, para ele, sua conduta é a sua própria vida.

Sexo. .Monstros também gostam disso.

Escrevi esta porcaria, depois de ler alguns artigos policiais podres e deprimentes. A merda quando entra na mente de um escritor tem que sair de algum modo. Temos que expelir a excrescência lida nas reportagens policiais.

Quero mostrar-lhes o que eu li e senti Vocês sentirão o caos tomando conta de vossas almas...

Exagerei bem o caso justamente PARA CHOCAR.

Venham.

Eu vos espero.

É fácil: basta ler... Não há como perder... No mundo das taras nós vamos entrar..

Não há como compreender!

Deixe a sua consciência de lado antes de prosseguir.

Natureza bestial ou selvageria consciente?

Pobres crianças!

12.09.1987

J.




VELHO DEGENERADO OU CRIANÇAS PERDIDAS?



Sr. Arnaldo.

61 anos

Sensato, educado, culto, limpo, classe média, homem de sociedade, professor primário.

Durante mais de cinco anos manteve secreto o seu lado hediondo e safado. Era o homem mais sexuado do bairro.

Tinha a maior quantidade de parceiros sexuais da cidade.

De ambos os sexos, de 12 a 14 anos. Todos eram alunos seus!

Cumplicidade?

Corrupção de Menores?

Toques, carícias, lambidas, chupadas, penetrações, sensações. O Sr. Arnaldo era o rei do sexo... Era o Senhor Sexo

Escrúpulos? O Sr. Arnaldo achava que o que fazia era parte da educação dos menores.


Aulas suplementares = Aulas práticas


Delegado: O senhor fez sexo com todas estas crianças?

Sr. Arnaldo: Lógico, sou o professor delas.

Delegado: Mas, sexo com crianças é crime...

Sr. Arnaldo: Eu sei... Mas era para o bem delas.....


Crianças desavergonhadas ou velho sedutor?

Pedofilia incontrolável?

Todas as crianças o veneravam... Tinham-no como ídolo. Para eles sua palavra era a lei suprema.

O sexo era a aula.

A matéria era dada por completo, sem restrições. Curso completo com direito a diploma, Mestrado e Doutorado.

Sr. Arnaldo era Mestre incontestável em sexo infantil, Doutor em estupro, PHD em corromper menores para fins ilícitos e imorais.

Poucos alunos escaparam dessas aulas práticas.

Alguns gostavam, outros tinham nojo, outros ficaram com problemas mentais por causa das aulas e algumas alunas tiveram filhos. Mas, estes foram casos raros. Somente três: coisa pequena.

Dores? Sim

Constrangimento? Em parte...

Coação moral. Os meninos e meninas faziam os atos por vontade própria mediante uma certa ameaça ou fraude.

O Sr. Arnaldo falava para os alunos que era um tratamento, uma aula prática, brincadeira, punição, ou outra desculpa idiota qualquer...

Monstro ignóbil, velho safado, viado, cretino. e todos os demais palavrões conhecidos e desconhecidos. E mais alguns ainda.

Selvagem, sedutor, louco e ardiloso.

Seu crime não tem classificação.

Punição?

Nem isso ele teve.

Pouco antes de ser preso, o velho se mata com um tiro no pênis.

Ironicamente acaba com sua própria punibilidade e destrói a “arma do crime”.

Seria uma última piada por parte do tarado? Talvez...

Mas, quem pagará os estragos feitos?

Vidas prejudicadas, danos mentais irreversíveis.

Dores e seqüelas para o resto da vida.

Velho tarado?

Pobres crianças!

O sexo verdadeiro já não existe...

O que existe é o desejo carnal incontrolável, sexo com qualquer um e a qualquer custo, mesmo contra a moral, a decência e contra a liberdade sexual.

Viva a humanidade!

Viva o sexo!

“Que o orgasmo seja o fim, e que sejam justificáveis todos os meios para consegui-lo “ este parece ser o “slogan “ de nossa época.

Deus nos perdoe

E as crianças também.

Aprendamos com elas. Talvez assim possamos construir algo decente...

Infantes deste mundo, salvem-nos da indecência humana!




3.


Não sei por que escrevo essas coisas. Talvez por mero deleite. Ou para descarregar algo que tenho preso dentro de mim.

Afinal, para que se escreve? Para comunicar? Sensibilizar? Emocionar? Não sei.

Existem momentos em que se tem vontade de se colocar tudo pra fora, como se fosse um vômito, um espirro, ou um catarro.

E esse “tudo“ que se põe para fora se transforma em histórias idiotas ou boas, poemas, filosofias ou bobagens, que é o que eu escrevo. Grandiosas bobagens!

Um poeta alemão, Heine se não me engano, dizia que das suas grandes dores fazia pequenas poesias. Acho que sigo esse caminho. Só que o meu problema é que absorvo as dores alheias e isso me faz sofrer demais e escrever bobagens, não poesias.

O que escrevi aqui é mais uma dessas bobagens. Já escrevi coisas parecidas e creio que as chamei de crônicas. Escrevo outra destas porcarias indecentes agora.

Não sei definir bem o que escrevi. Quando escrevo, é como se fizesse sexo. Aquilo sai de uma vez, sem qualquer censura ou domínio da minha parte.

Esta porcaria deve ser útil para alguém... Sei lá.

Escrevi... Não sei se serve para algo...

Sem data

J..




O SONHADOR DA SABEDORIA E DA CULTURA


Genésio teve um sonho

Estava em um local estranho. Uma cidade.

O mundo era inverso: Os mendigos e pobres eram cultos...

Andava na rua e via cenas incríveis:

Um mendigo aqui tocava violino enquanto outro o escutava e falava: “Prefiro o 2 º movimento “.

Um outro dizia em voz alta: “Será que alguém pode me emprestar um livro. Pode ser um clássico de Platão, um romance de Goethe ou poesias de Tennynson.“

Genésio estava certamente bêbado

Mendigos falando de Goethe e Platão?

O violinista chega perto e lhe pergunta: Prefere Beethoven ou Paganini?

Genésio disse que preferia Paganini.

O violinista começou tocar somente de brincadeira uma mistura do “Moto Perpétuo” com trechos da Sétima e Nona Sinfonias de Beethoven.

Genésio achou aquilo uma loucura.

Pediu para o violinista tocar uma música de Mozart.

Este prontamente o obedeceu.

Do músico, Genésio passou a ouvir uma discussão literária.

-- Não concordo. Para mim Alencar não é tão bom autor – falava um pobre diabo vestido somente com um calção e uma camisa repleta de furos e cheirando muito mal.

-- Alencar é o mais brasileiro dos escritores. Sua obra é cheia de referências aos índios e pessoas humildes que são a base do povo brasileiro – rebatia uma mulher de seus sessenta anos, com um rosto cheio de rugas e toda encolhida em um canto.

Aquilo era demais!

Atravessando a rua, Genésio vê uma pessoa que mais parecia um espectro.

Era um fantasma?

Não, era uma criança de oito ou nove anos, toda nua, magra, quase esquálida.

Estava tocando saxofone, como um verdadeiro mestre do Jazz.

Aquilo era loucura demais junta em um mesmo lugar.

Genésio resolveu ir para uma ponte.

Subiu na amurada.

Olhou para baixo. Era um rio.

Pulou.

Mergulhou.

Nadou até a margem. Tinha que lavar seu corpo e mente daquele mundo doido.

Quando saiu da água, viu um velho de grandes barbas e cabelos brancos, como uma espécie de Papai Noel.

Estava vestido de branco e sentado em uma pedra.

Pensava.

Meditava.

Genésio foi até ele e perguntou:

-- Em que pensa, meu senhor?

O homem vira a cabeça para ele, sorri e responde:

-- A água do rio em que pulaste é límpida e fresca. Já pulei inúmeras vezes nela. Seu pulo me fez pensar nas águas.

-- Lembras ainda como era o rio antigamente?

-- Rio? Não. Já pulei nas águas de um rio mas não falo destas águas. Falo sobre as águas do céu. Este céu em que você pode nadar nadar, nadar sem nada alcançar. Não há limites. Se o que falo é loucura? Não. Estas águas existem e são a essência da vida.

-- Já mergulhaste nestas águas do Céu?

-- Aguardo minha hora e vez. Espero esse mergulho, como uma pessoa que subiu milhares de degraus de uma escada bem íngreme e se depara, no último degrau, com uma porta, sendo que se pode ver a luz passando pelas frestas do outro lado para o lado de cá. A porta esta fechada. Espero que abram.

-- Mas o senhor quer seguir adiante?

-- E quem não quer? Corpo cansado, memória fraca, ninguém se importa mais comigo, o que posso esperar mais destas águas daqui? As de lá de cima são mais profundas e belas.

-- Se já sabe como elas são, porque não arromba a porta?

-- A porta se abrirá. Para que arrombá-la? Sinto-me como se tivesse uma grande trilha pela frente e o que me impede é só uma parede de vidro, que se torna mais fina com o passar dos anos.

-- Pode me dizer quem sou, quem és e onde estou

-- Você é um sonhador, eu sou tua alma e está dentro do seu sonho.

-- Você é minha alma?

-- Sim.

-- O senhor falou que pulara em um rio. Não me lembro de ter pulado em rios na minha vida.

-- 17 anos. Férias, verão. Lembra-se?

-- Sim, agora me recordo. Você é o meu subconsciente?

-- Não. Sou o seu Consciente contemplativo. E você é o Consciente impulsivo.

-- Quem são os mendigos?

-- Seus outros Eus.

Genésio se levantou.

-- Desculpe vovô, mas detesto piadas.

-- É pena. Adeus.

Genésio apagou.

Genésio acordou

Levanta-se e pensa demoradamente.

Olhou-se no espelho: 30 anos de idade.

Olhou para sua mesa vazia e sem alegria.

Tinha que tomar uma decisão rapidamente.

Pegou o lençol da cama.

Fez o laço

Enforcou-se!

Morte demorada.

Felicidade completa?

Ou o início da caminhada?

Ou então o fim do desespero?

Ou ainda, o começo das Trevas?

Velhos, moços, todos somos insanos.

A vida é chata...

Que importa afinal?

Quem liga, afinal?



4-


Delírios! Eu só escrevo bobagens mesmo...

Sonhos de um alucinado que não sabe o que quer e aonde quer ir. Vê o que ninguém vê. Sente o que outros não sentem.

Esses textos modernos que contém referências a drogas, alucinógenos e coisas do gênero pouco me agradam. Prefiro os loucos e as loucuras normais.

Quem precisa de alguma planta, pó, ácido ou coisa parecida para ver, sentir algo diferente é um tolo. Para sentir algo novo e diferente basta fechar os olhos e criar. Criar, essa é a palavra chave.

Resolvi juntar um monte dessa baboseira alucinógena em um único texto imbecil.

Acho este texto uma porcaria inominável. Dei o nome de Delírios somente para colocar um nome.

Confesso que a loucura, em si mesma, me atrai. Cada pessoa tem um toque de anormalidade.

Afinal, todos nós somos anormais.

Eu, pelo menos, sou o cúmulo da anormalidade. Prefiro mil vezes ser anormal a adotar a normalidade irritante dos nossos dias.

Se Deus é anormal, por que eu devo ser normal?

Gostem ou não é isso o que sou: um anormal, um imperfeito, um doido, num mundo normalmente louco.


Sem data

J




DELÍRIOS DE UM ALUCINADO



Acordou. Teve um sono muito pesado.

Ele se levantou da cama. Boceja.

Olhou para a porta do quarto, que, naquele instante, parecia estar a uns cinco quilômetros de distância.

Dirigiu-se então para a porta

Deu um passo, e a porta parecia que se afastava dele.

Deu outro, e ocorreu, novamente, o mesmo.

Ele achou que estava ficando louco.

A única solução seria um pulo e Ele acaba pulando e agarrando a maçaneta da porta.

Estava um pouco nervoso. Acalmou-se.

Ele tenta abrir a porta, mas a maçaneta se desfaz na sua mão. Parecia feita de... Chocolate? Sim, era de chocolate. Ele acaba comendo a maçaneta. Estava com muita fome e a maçaneta lhe pareceu muito apetitosa.

Ele resolveu, então, arrombar a porta. Deu um pontapé e a porta se desfez em pó.

Então Ele pôde ver o que havia do outro lado daquela porta: uma grande rua asfaltada. A porta conduzia diretamente para uma rua asfaltada.

Ele não compreendeu, mas prosseguiu e pisou na rua, notando que a mesma estava deserta, sem ninguém por perto.

Na rua, somente viu leões, cães, gatos, feras andando, tomando conta daquela Cidade fantástica.

Ao seu lado direito notara a presença de uma esfinge de pedra que rosnava olhando fixamente para ele. Uma estátua de uma deusa grega antiga começou a dançar bem na sua frente. Primeiro ela deu passos de samba, depois iniciou uma dança parecida com a dança do ventre e começou a se despir.

Ao seu lado esquerdo viu uma estátua de bronze fazendo ginástica.

Começou a caminhar novamente.

Ouviu gritos. Uma pessoa caiu de um andar de um prédio logo a sua frente. A pessoa caiu no chão e, ao invés de se ferir, começou a pular como se fosse de borracha até parar ao lado dele, sorrindo: Era uma menina de uns seis anos de idade.

Ela olhou para ele e saiu pulando de novo, como se fosse uma bola de tênis.

Ele olhou para cima do prédio de onde a menina tinha caído e não conseguiu ver o último andar. Parecia ser um edifício alto demais. Ficou curioso!

Esse prédio ficava do outro lado da rua.

Ele olhou para a rua. Passou um carro bem na sua frente. Era um Chevrolet daqueles bem antigos, mas, vinha puxado por seis cavalos. O motorista ia ao volante, dirigindo, enquanto uma passageira saia pela janela chicoteando os animais.

Atravessou a rua.

Olhou para a entrada do prédio. Parecia a entrada de um grande hotel de luxo, tendo um manobrista e um porteiro, os dois vestidos de azul escuro e dourado.

Entrou no hotel, e, dentro deste, o ambiente se transformara abruptamente: Na rua parecia um hotel cinco estrelas e dentro era um mero e singelo açougue.

Olhou para a geladeira que existia logo na entrada onde se exibiam muitas carnes e, para seu espanto, notou que havia também uma cabeça humana que começou a sorrir para ele.

Saiu daquela parte do açougue completamente atônito. Dirigiu-se até uma porta onde estava escrito “Congelador “ em letras de cor lilás.

Abre a porta do tal Congelador e viu, em seu interior, três moças muito bonitas e bem arrumadas, que lhe perguntam: “Vai subir?“.

Era decididamente um elevador.

Ele entrou.

O elevador começou a subir.

Subiu doze andares e parou.

Uma das moças disse: “É o nosso“ e abriu a porta.

As três moças saíram. Ele não conseguiu ver o interior do andar. Estava muito escuro.

A porta se fechou

O elevador retomou a marcha.

Ele começou a reparar no mostrador eletrônico que existia acima da porta: 14... 15... 16... 17...

O elevador foi acelerando

26... 40... 60

Acelerou mais ainda. Ele se grudou à parede.

90... 160... 200... 290... 367... O elevador começou a parar.

412... Parou

Ele abriu a porta do elevador e entrou em um hall, todo decorado com carpete de cor de vinho, com paredes revestidas de madeira nobre, tendo um quadro com o rosto Dele mesmo na parede da direita e um desenho pornográfico na parede da esquerda. Na sua frente havia uma porta de madeira bem escura e, bem ao lado desta, uma mesinha com um livro, provavelmente de presenças.

Ele abriu e folheou o livro onde notou a existência de inúmeras assinaturas estranhas e nomes como Einstein, Nero, Planck, Blake, Poe, Milton, Dante entre outros tantos.

Assinou o livro e abriu a porta, muito curioso.

Era um gigantesco salão de baile.

Era uma reunião indescritível. Todos estavam vestidos com roupas do século XVIII e bebendo muito vinho servido em copos plásticos. Algumas pessoas dançavam, no centro do recinto, ao som de uma orquestra de câmara com cerca de trinta violinos além de outros instrumentos do século XVIII, mas que, para seu espanto, tocava samba e frevo.

Ele não sabia o que fazer ou para onde ir.

De repente, alguém parece que está o chamando.

-- Vem cá – disse uma moça de uns vinte e cinco anos, vestida como uma condessa – chegou atrasado.

Ele estava pasmo.

-- Sei que está deslocado, pois você não conhece ninguém aqui – disse a moça, como se o conhecesse há vários anos.

Ela toma-o pelo braço e começa a andar com ele pelo salão.

Ele nota outras coisas interessantes.

Existiam vários ambientes naquele baile, mas todos eles juntos no mesmo salão: Aqui temos um grupo de homens que jogam cartas, mais adiante três velhos cantavam canções em uma língua que ele desconhecia, um outro grupo dançava, outros discutiam filosofia, artes, ciência e outros assuntos mais. Parecia uma confusão total, uma festa sem qualquer controle. Uma Torre de Babel.

A decoração era pavorosa e absurda: um lustre com tons de rosa, verde-escuro e marrom pendia do teto, velas de todas as cores estavam espalhadas pelo salão, havia nas paredes quadros de inúmeras pessoas desconhecidas, quatro retratos Dele mesmo, vários quadros com cenas de pornografia explícita e quadros de mulheres e homens completamente nus. Havia também várias estátuas de criaturas monstruosas, uma estátua do Imperador Romano Augusto urinando e coçando as nádegas, várias peças de porcelana com figuras de desenho animado como Mickey, Pluto, e Popeye. Era uma loucura completa

Em um canto havia um jovem casal fazendo sexo e um grupo de seis ou sete pessoas, ao redor deles, fazendo apostas.

Havia certas cenas completamente absurdas: um cavalo conversando com um menino de sete anos sobre as Guerras Púnicas, uma estátua de um guerreiro persa declamando Hamlet, um casal dançando sem roupa, seis senhoras de cerca de noventa anos cada uma numa conversa séria e compenetrada sobre a origem do sexo grupal, dois meninos dando facadas em uma menina que, a cada golpe que recebia, morria de rir.

-- Que significa isso tudo? – Ele perguntou.

-- Você criou tudo isso – disse a moça.

Ele pensou durante algum tempo

-- Eu criei você também? – perguntou Ele.

-- Não totalmente, eu também faço parte da sua vida real, mas você não me conhece ainda. Depois que sair desse Mundo, você irá me encontrar – respondeu a moça e continuou – só lhe dou um conselho: Não leve tudo isto a sério e não se apegue a nada do que está aqui incluindo eu. Vou acabar sumindo de uma hora para outra.

-- Por quê? – perguntou

-- É assim. E não se assunte se me ver morta por ai, ou fazendo qualquer coisa de desagradável. Você irá me ver de qualquer modo depois, do jeito que sou. Ponha isso na sua cabeça!

-- E o que eu faço agora?

-- Aproveite o ambiente! Nada poderá te acontecer de mau.

Ele resolve, então, testar o local onde está.

Olha para uma moça que está ao seu lado e fala:

-- Quem é você?

Ao que responde a moça com uma voz bem masculina e tirando uma pistola de brinquedo de dentro da bolsa de palha:

-- Sou Carlão, seu criado. Quem quer que eu mate?

Volta-se para a moça vestida de condessa, mas ela já tinha sumido.

Virou-se para trás

Olhou para um quadro pornográfico que estava na parede bem a sua frente. Era um sexo grupal com, pelo que Ele conseguiu contar, umas doze pessoas. Ele chegou perto da pintura.

No que ele pôs a mão no quadro, uma das figuras do quadro, um homem já idoso, vira-se para ele e diz:

-- Não se pode mesmo ter privacidade, né?

E fechou uma cortina azul que encobriu o quadro todo. Ele ainda ouviu uns gritos vindos de dentro do quadro e expressões como: “Safado“, “Não tem mais o que fazer?”.

Ele começou a se divertir com aquela história toda.

Chegou perto de um grupo de senhores com caras de homens importantes. Parecia que eram os únicos sãos ali.

Mas, Ele estava errado, os tais homens estavam brincando como crianças, ora de esconde-esconde, ora de bolinhas de gude. Pareciam débeis mentais.

Olhou para o lado, e viu uma cena muito interessante: uma moça e um rapaz conversavam animadamente. Ele já até esperava que deveria ser algo absurdo e fora do comum.

Ambos conversavam normalmente sobre amizades, bailes, música, pareciam normais.

Ele se afastou.

Foi quando viu onde estava toda a loucura da cena: O rapaz e a moça haviam se despregado de dois quadros. Eram duas pinturas. Os quadros que os originara estavam com um espaço branco, de onde saíram os dois.

Vira-se e começa a andar pelo salão.

Passou por uma janela por onde entravam raios de sol. Resolveu ver a paisagem. Ele nem se assustou quando viu, por esta janela, uma bela enseada com um imenso mar bem adiante, além de gaivotas, e um pescador logo na frente da janela conversando animadamente com um albatroz.

Seguiu adiante e viu um armário.

Notou que havia ali uma coleção de livros. Puxou um volume. Era em latim. Ele entendia um pouco desta língua, mas não entendeu nada do que estava escrito no livro, pois cada vez que virava a página as letras se alteravam. Em uma das vezes que virou a página, todas as letras fugiram correndo da página da esquerda para a da direita, deixando apenas um ponto solitário na outra página.

Guardou o livro.

Era tudo fascinante. Ele se sentia como em um desenho animado.

Resolveu sair do salão. Viu uma porta.

Abriu.

Saiu para um novo local: Era uma área ao ar livre.

Era uma rua, uma viela daquelas cidades da Idade Média. Era um pouco escura e estava completamente deserta.

Andou por ela até o fim e chegou a uma praça.

Tinha uma Igreja.

Estava tudo muito quieto.

Havia casas, todas com as janelas fechadas. Havia aqui no muro ao lado da Igreja um retrato de John Lennon, e abaixo estava escrito: Vote no melhor. Era um cartaz político.

Não havia nada na Rua, além de muito pó, papel picado, várias moedas e alguns pneus velhos.

De repente, Ele vê um grupo andando. Eram sete pessoas, todas vestidas de preto e de capuz, carregando um caixão aberto, com uma mulher dentro dele.

Ele não conseguiu ver a mulher direito.

O grupo seguia para a Igreja. Pareciam Padres ou Monges.

A cada dois ou três passos, um deles dava um urro bem alto, como se tivesse tropeçado ou levado um chute.

Na metade do caminho eles se puseram a cantar, com vozes de cantores líricos, a música “Come Together” dos Beatles..

Quando chegaram perto da porta da Igreja, pararam e jogaram o caixão no chão, como se fosse uma mala de viagem muito pesada.

Silenciaram e ficaram em fila como um grupo de soldados.

Só ai que Ele percebeu que a mulher no caixão era aquela mesma moça da festa. A tal Condessa.

Ele se desespera.

Não sabe o que faz.

Pensa e reflete.

Ela mesma tinha dito para Ele não se assustar se ela aparecesse morta. Então, Ele deduziu que ela já sabia o que iria ocorrer.

Ele chegou à conclusão que aquela cena também era uma parte do seu Sonho ou parte daquele Mundo cretino. Começou a rir.

Aproximou-se dos sete homens que estavam de capuz e tirou o capuz de um deles, o que acabou desmanchando toda a roupa do homem e acabou por deixá-lo totalmente nu.

O homem era oriental, eunuco e aparentemente mudo. O oriental entrou em desespero e começou a latir.

De repente Ele ouve gritos, algazarra. Uma multidão vem caminhando para o centro da praça gritando.

Em poucos instantes a praça é tomada e ele vê um grupo de pessoas levando um homem para uma espécie de palanque. Ele olhou melhor e reparou que o homem iria ser guilhotinado.

As pessoas levaram o infeliz para o local da sua punição.

Um Padre fala em alto e bom som: “Chamem o Carrasco“.

Ele vê o Carrasco chagando e começa a rir. O fulano é um anão, magro, sem dentes, feio, corcunda, manco, e com mais uns doze defeitos. Não dava para saber se era um homem ou um orangotango.

O Padre fala: “Antes, uma palavra do nosso patrocinador “

Ele acha que o padre ficara louco.

Logo depois do anúncio do Padre, entram seis adoráveis moças cantando uma música publicitária sobre as “Guilhotinas Luiz XIV“. As seis moças traziam nas mãos duas cabeças de pessoas guilhotinadas, que também cantavam.

Depois desse interlúdio comercial, o Padre disse: “Agora a Cerimônia da entrega da Chave do Céu para o futuro defunto, o que será feito pelo nosso Prefeito“

Nisso entra um menino de cerca de dez anos de idade com uma chave de prata na mão, vestido de terno e gravata.

Ele entrega a chave para o rapaz.

Então o Padre fala: “Comecem a cerimônia “

Nesse momento o público se afasta e entra um homem grisalho de fraque, e começa a cantar o hino dos Estados Unidos.

Depois, entram dois homens e sentam ao lado do Padre, ambos com microfones nas mãos e começam a narrar o evento.

Ele se acha logicamente no meio de um circo.

Começa um dos narradores: “Grande público hoje aqui na Praça Central veio prestigiar o grande evento da semana. O grande clássico das Execuções: a morte do assassino de Dona Ana. É uma execução há muito tempo esperada...”.

O narrador continuou, falando do tempo, das condições físicas do Carrasco, que havia sido cortado na semana passada e tinha ficado no banco, do Padre e de todo aquele circo...

Ele resolveu sair daí.

Dirigiu-se à Igreja e entrou.



***

Dentro da Igreja, passou Ele para um outro ambiente: Era um quarto branco.

Agora sim, Ele parecia ter realmente acordado de um sonho. Estava deitado em uma cama.

-- Oi – disse uma pessoa que parecia estar a sua frente.

-- Quem é você?

-- Sou sua enfermeira.

Quando abriu os olhos, viu que era a condessa com quem tinha conversado no sonho.

-- Mas eu conheço você...

-- Talvez. Você fala muito quando dorme. Eu discuti muito com você dormindo.

-- Então era isso...

-- Eu acho que devo ter até influenciado no seu sonho, né?

-- É, mas o que eu faço aqui?

-- Você operou um tumor no cérebro, lembra?

-- Isso parece que foi há dois séculos atrás.

-- Gostou do sonho?

-- Claro. Você estava nele...

-- Eu sei... Mas agora é a realidade que é muito diferente.

-- Você sabe o que se passou comigo?

-- Não. Tudo é sua ilusão, mas eu acho que podemos conversar isto quando você quiser depois que você se curar em um jantar. O que você acha ?

-- É um convite?

-- Sim.



***



Daquele sonho todo Ele só conseguiu se lembrar da existência da Condessa, que é o que realmente lhe importava em todo o Sonho. Seu inconsciente se apaixonara pela enfermeira e a transformara, em seu sonho, em uma condessa, ou seja, Ele já estava apaixonado por ela muito tempo antes do seu Consciente conhecê-la na realidade. E o mais interessante de tudo: Seu amor era correspondido...

Nada mais estranho que a mente humana e as relações humanas. Nada é tão estranho quanto viver. A estranheza é parte da vida, sem ela a vida perde a sua graça.

-- Isso faz parte do sonho? – pergunta Ele

-- Sim, mas agora é a parte real dele – disse a enfermeira e ex-condessa.

sábado, 3 de julho de 2010

"Nada mais é como antigamente", Opus 6, by Fabio Zafiro Filho


Era final da madrugada. Ouvem-se batidas na porta.

Serena abre a porta e seu marido entra em casa, cansado.

- O que foi, meu amor? Perdeu a chave?

- Acho que sim.

Valério senta-se.

- Você está realmente um caco. Relaxe um pouco – diz Serena

- Vou tentar.

Valério estava realmente deprimido. E isso já tinha algumas décadas. Sua vida era anormal. Era evidente. Não tinha como ser de outro modo. Mas, ele se questionava se tinha mesmo sido certo deixar-se levar por aquele momento, naquele passado remoto, quando resolveu se casar e ter filhos.

A situação de Valério pode parecer ao leitor, assim de inicio, comum. Uma pessoa normal, com problemas normais. Mas, não é bem assim. Há um ponto nessa história que precisamos esclarecer, senão toda a história não fará o menor sentido: Valério é um vampiro

Sim, meu caro e incrédulo leitor. Vampiro. Como o velho Drácula das histórias do cinema, mas só que Valério vivia a vida real e não na fantasia das telas.

Ele veio pra casa correndo porque já ia amanhecer e vampiros vivem somente à noite. Isso não é lenda não. É a mais pura verdade. Se eles permanecem acordados de dia podem morrer. Contudo, as causas dessa morte por ficar ao sol são mais reais: câncer de pele, que é fatal para um vampiro. Uma das raras doenças que conseguem levá-lo de volta às trevas.

Valério é imortal, como qualquer vampiro que se preze. Contudo, a imortalidade tinha limites, como o câncer de pele que acabamos de mencionar. Os escritores, cineastas e o povo em geral romantizaram esse aspecto da vida torturante de um vampiro. Ora, ele não vira cinza quando sai ao sol. Isso não passa de invenção de escritores e roteiristas.

Decididamente ele estava ficando velho. Tinha mil, trezentos e oitenta anos. Estava entrando em uma fase de sérios problemas psicológicos: tinha sonhos horríveis, vivia deprimido, tinha mania de se sentir perseguido por inquisidores medievais, e várias outras neuroses.

Quando chegou em casa, sentou-se em sua cadeira predileta e ficou pensando no dia que passou. Acabou dormindo.

Teve mais um dos seus sonhos. Hoje ele sonhava algo absurdo: Seu dente canino, que já lhe dera tantas glorias na vida, estava cariado. E ele sonhava que estava em um consultório dentário, extraindo o dente.

Acordou berrando.

- Pesadelos de novo, meu querido?

- Sim, preciso consultar o Doutor Sila

- Tem razão. O jantar está pronto. Venha comer!

Agora o leitor acostumado com as histórias de Hollywood irá estranhar. A comida servida é comum: arroz, feijão, salada. Contudo, o prato principal é o que interessava: Carne de bode praticamente crua e ensangüentada.

O leitor não está inteirado sobre o mundo vampiresco.

Atualmente, a comunidade de vampiros restringe e muito o uso de sangue humano. Há uma tendência de se evitar esse tipo de guloseima. Explicamos: Existem dois motivos: Os vampiros estão mais humanistas e o sangue humano perdeu, para eles, o charme de antigamente. Nos dias atuais, mordidas em pescoços incautos são reservadas para: recém-nascidos, dias importantes para a comunidade, aniversários, e outras festividades.

Valério tinha dois filhos

Ambos estavam à mesa

- Pai, por que carne de bode de novo?

- Porque é o melhor para você crescer

- Eu não gosto

- Come de uma vez

- Não quero

- Come logo, senão vai coagular e vamos ter que jogar fora.

- Valério, não desconte os seus problemas nas crianças – advertiu a esposa.

Valério levanta-se e deixa a comida no prato.

Senta-se de novo na cadeira e chora

A esposa senta-se ao lado e tenta consola-lo

- Você não sabe o que eu passo para conseguir essa carne para eles

- Sei que se esforça, mas que adianta descontar tudo neles?

- Hoje eu comprei a carne logo que escureceu. Mas, dois moleques começaram a me perseguir com estacas na mão. Quase derrubei a carne no chão.

- Estacas? Isso é coisa de antigamente. Não acabaram com essa mania de correr atrás da gente tentando cravar estacas nos nossos corações?

- O pessoal da Idade Média parou com essa mania. Mas esses garotos que ficam assistindo filmes ainda acreditam nisso e ficam me apavorando.

- Como você fugiu deles?

- Tive que me transformar em um morcego.

- Daí eles saíram correndo, aposto.

- Claro

- Ta explicado porque você perdeu a chave

Leitor amigo, as estacas não são tão eficazes assim. Tem todo um procedimento para cravar estacas nos vampiros. Cravar estacas comuns e de qualquer jeito faz apenas o vampiro ter um acesso de cócegas. O método exato para se cravar estacas em vampiros se perdeu. E mesmo que existisse algum ocultista ou estudioso de vampiros que soubesse realmente como usa-las, ficaria decepcionado. O procedimento é tão cheio de regras, fórmulas mágicas e gestos que ele preferirá esquecer o vampiro e voltar para casa.

Transformação em animais. Sim, é assim que o vampiro se sente mais vampiro. Contudo, Valério não tem sorte quando se transforma em animais. Só se dá bem quando vira um morcego. Quando vira cachorro, geralmente leva uma coça de outros cães. E por ai vai. Teve até uma vez que alguns bodes confundiram-no com uma cabra, mas não vamos contar aqui essa cena humilhante.

- Por que você não vai dormir mais cedo?

- O nosso caixão está arrumado?

- Claro

- Acho que vou tomar um banho antes.

Sim, vampiro dorme em caixão e, recentemente, os vampiros casados adotaram o uso do caixão de casal. O caixão é usado para dormir e também para o ato sexual.

- Sua mãe não disse que vinha aqui hoje? – lembrou Valério

- Sim, é verdade.

- Isso será uma tortura.

Vampiros têm sogra? Claro, nem eles se livram desse mal.

- Sua mãe deve ser descendente do Van Helsing!

- De novo esse preconceito porque a minha mãe não é vampira?

- Não, se ela fosse vampira eu a compararia ao Stalin, aquele fofo. Por que ela odeia vampiros?

- Ela não me odeia.

- Claro, ela é sua mãe. E ela não sabe que você se tornou vampira depois de casar.

Van Helsing existiu? Não, só no romance do Bram Stoker. Há preconceito dos vampiros contra os não-vampiros? Sim, eles se denominam uma raça superior, tal como os nazistas.

- Por que ela tem a mania de trazer aquela cruz horrenda

- É só para te provocar

- Eu sei, mas para que me provocar? Essa é uma atitude típica de sogra.

Cruz. Vampiro teme o crucifixo? Sim, ele tem medo, mas não tem nenhum efeito sobre ele. Não é como o efeito da Kriptonita no Super-Homem. O medo vem mais do fato de que, na Idade Média, o crucifixo vinha sempre seguido por um bando de fanáticos, do que pelo fato de que a cruz é uma das representações de Cristo. Os Vampiros não são seguidores do mal, são apenas agnósticos e estão nas trevas apenas por não terem provas da existência de Deus.

- Mas ela traz presentes para você.

- Sim, trouxe um bolo salgado delicioso...

- Tá vendo

- ...recheado com alho

- Querido, aquilo foi uma brincadeira.

- Tanto que você sabe no que resultou.

Alho. É um veneno para o vampiro. Não, o alho não mata o vampiro, só o afasta. Por que? Simples, o intestino delicado do vampiro não tolera o alho e, consequentemente, quando ele o ingere tem uma magnífica, abrangente e explosiva diarréia. Ao ver o alho, o vampiro se afasta, pois se recorda das dores de barriga, e dos longos tempos perdidos no banheiro. Os vampiros, em virtude de sua dieta baseada em sangue, têm um intestino muito delicado e que não tolera alho.

- Amor, faça o seguinte: fique lá no quarto e eu recebo a mamãe aqui embaixo.

- Você é sensacional. Grande idéia!

- É, eu sei.

Valério corre e vai para o quarto.

Toca a campainha.

- Oi, mãe

- Olá, minha filha. E o seu marido?

- Está indisposto.

- Algum sangue podre que ele bebeu?

- Mãe, a senhora também – disse Serena, com leve toque de raiva – precisa parar de criar caso com o Valério.

- Só porque ele é da Transilvânia?

- Mãe, ele é vampiro, mas não é da Transilvânia.

Os vampiros não vêm, necessariamente, da Transilvânia. Isso nasceu na história fantasiosa sobre o Conde Drácula. Vampiros existem em todos os lugares. Não existe uma “pátria” dos Vampiros. Eles são como os ciganos, por exemplo.

- Vampiro! Minha filha casada com um vampiro!

- Já conversamos sobre isso, mãe.

- Ta, estou tentando me conformar. Por falar nele, onde ele está?

- No quarto

- Dormindo?

- Descansando

- Seu marido nega a raça. Nem vampiro ele consegue ser. Não tem cara de vampiro. Parece, quando muito, um zumbi. Tanto que está dormindo.

Os vampiros não são todos iguais ao Conde Drácula. Nem todos têm aquele estilo “Família Adams”. Alguns resolvem se apresentar de uma forma mais amena, sem olheiras, pele esverdeada e cadavérica, cara pálida, e outras características que marcam a espécie.

- Na verdade eu resolvi vir aqui para fazer um teste. Queria ver a reação dele à água benta.

- Mãe. Meu marido não é um rato de laboratório.

- Concordo, é um morcego de laboratório.

- Mãe

- Tá, mas água benta queima mesmo ele?

Essa pergunta nós respondemos. Não, outra lenda urbana. Isso surgiu porque algumas pessoas usavam água oxigenada como água benta. E vampiros, em razão dos seus problemas de pele, não toleram água oxigenada.

- Mãe, se você resolver testar isso, eu conto para todas as suas amigas com quem a senhora teve sexo pela primeira vez na vida.

- Você não seria tão má assim

- Se você for testar essa água no meu marido, eu seria sim.

- Pois bem. Vou embora. Vejo que sou “persona non grata” nesta casa de vampiros e Dráculas.

- Adeus

Serena fecha a porta e depois sobe as escadas

Entra no quarto e encontra o marido dormindo no caixão, já de pijama. Sim, vampiro usa pijama, como qualquer pessoa normal.

Além dos problemas causados por sua mãe, que sempre foi contra o casamento, Serena sabe que é duro para o seu marido viver nessa época atual. Tudo é diferente.

Não existe mais aquele romantismo de morder o pescoço de uma pessoa indefesa. Expliquemos: A mordida não causa a morte de ninguém. Outra lenda. A mordida de um vampiro é como a picada de um pernilongo: anestesia para extrair o sangue.

Nesse tempo de hoje ninguém consegue voar mais sossegado.

É uma época triste para os vampiros.

Nada mais é como antigamente.

"Personagem Rebelde", Opus 5, by Fabio Zafiro Filho


Meu nome é Joelson Carlos...

É um nome fictício. Acabei de inventá-lo agora mesmo. Sou uma pessoa criativa. O nome estava apenas se formando na minha mente e acabou como que pulando no texto, como se fosse um daqueles atletas de salto olímpico.

Vocês leitores devem estar pensando: Por que será que esse escritor demente necessita de um nome fictício? Ele pretende delatar algum crime? Fazer algum relato erótico? Deseja revelar segredos da máfia italiana?

A minha resposta é: Não. O que eu vou relatar aqui deve ser contado por uma pessoa qualquer. Sim, eu sei que eu sou uma pessoa qualquer, um escritorzinho bem medíocre. Contudo, senhoras e senhores leitores ávidos por histórias atraentes, cultas e elegantes, eu preciso de um herói – e classifico o Joelson Carlos como um herói somente para me sentir como um grande romancista – que seja anônimo, impessoal, quase ignorado.

Bom, alteremos agora para a salutar narração em primeira pessoa, pois é o Joelson Carlos, e não esse escritor pavoroso que agora escreve, quem irá relatar os acontecimentos. É claro que eu – escritor poderoso, autoritário e dono da verdade – irei intervir toda vez que for necessário ou quando sentir vontade.

Meu nome é Joelson Carlos. Moro e trabalho na periferia. Sou um simples zelador de um prédio de classe média. Todo dia eu saio do trabalho e vou a pé para minha casa. Não é longe não! São apenas alguns quarteirões de distância. Volto para casa todo dia andando porque, desse modo, o condomínio economiza no vale-transporte. Mas, é melhor assim, porque eu não suporto andar de ônibus ou de bicicleta.

A melhor parte do dia é quando estou indo ou vindo do trabalho. Em casa não tenho paz. Tem a minha mulher brigando comigo todo santo dia por milhares de problemas bobos, os filhos chorando, gritando e fazendo todas aquelas coisas chatas que as crianças fazem, as contas, os vizinhos, os parentes, os animais de estimação, e tudo o mais que um pai de família tem que suportar. No trabalho então é pior ainda: o síndico dando bronca em mim vinte e cinco horas por dia, os condôminos reclamando a cada minuto, crianças jogando bola no vizinho e quebrando janelas, brigas entre locatários e condôminos e mais um monte de coisa para tirar a paciência de um pobre coitado como eu.

O que me sobra? Só a minha caminhada.

A sensação que tenho quando saio do serviço é quase como a de um orgasmo...

Intromissão número um do escritor: Perdoem-me a interferência já logo no inicio, mas preciso lhes avisar que tenho mania de soltar umas piadinhas no meio do texto. Portanto, alguns efeitos histriônicos e um pouco de comicidade serão incorporados ao relato do Joelson. Em si, o meu herói é um tanto enfadonho, mas não me custa inserir na sua fala um pouco de humor refinado. Ai ele passará a ser um personagem mais profundo, psicologicamente falando. Bom, essa profundidade pouco me importa.

Voltemos ao Joelsinho:

Sim, um orgasmo. Ao colocar o meu pé na rua, sinto como se tivesse tirado dos ombros todo o peso do mundo. E ai eu entro em mundo místico e quase religioso.

O que tem de bom nessa minha caminhada?

Querem saber?

Hoje estou voltando para casa. Vocês querem pegar uma carona?

Pronto.

Sai do trabalho.

Fora do condomínio, eu olho para frente e sigo adiante.

Ando devagar, sem pressa.

Logo na esquina tem uma ruazinha para atravessar. Essa rua é movimentada e, a cada mês ou quinzena, há um acidente no cruzamento. Já cheguei a ajudar um rapaz de bicicleta, que escapou por muito pouco de um choque com um carro. Ele desviou e foi parar no muro. Foi sorte.

Hoje, a rua está bem mais calma.

Olho para os dois lados.

É via da mão única, mas esqueceram de avisar isso aos caminhões de uma transportadora aqui do bairro. Todos eles usam a rua como se fosse de mão dupla. Na maioria das vezes estão bêbados. Então é melhor ficar atento e olhar sempre para os dois lados.

Atravesso.

E começo a filosofar...

Intromissão número dois do escritor intrometido: Perdoem-me, mas preciso interromper a narrativa para explicar o termo “filosofar” do ilustre personagem deste texto. Adoto “filosofar” aqui no sentido limitado de “pensar na vida”. Não esperem encontrar aqui um estudo aprofundado sobre arquétipos platônicos, o Criticismo de Kant, ou o super-homem Nietzscheniano. Joelson não é estudioso de filosofia européia. Nem eu sou. Então, se você, senhor leitor culto, esperou ler algo mais aprofundado sobre Filosofia pode parar de ler aqui e jogar este texto no lixo. Voltemos ao “filósofo” Joelson Carlos.

Filosofando sobre a vida e sobre tudo, exceto sobre minha casa e meu trabalho. Quero fugir!

Sobre o que eu filosofo?

Na minha caminhada diária entre o condomínio onde trabalho e a minha casa aparecem inúmeras cenas interessantes. Penso sobre elas. Mesmo no dia em que tais cenas são raras, sempre há algo para se meditar.

Exemplos?

Depois de sair do prédio, logo no segundo quarteirão, vejo dois grupos de rapazes conversando: o primeiro é formado por peões, trabalhadores das imediações que relaxam do cansativo dia de trabalho; o segundo grupo é formado por adolescentes que comentam jogos de futebol, garotas, e talvez fumem alguma coisa ilegal.

Desses dois grupos eu posso tirar centenas de filosofias.

Os rapazes do primeiro grupo são mais pensativos – talvez estejam filosofando sobre a vida como eu – e conversam sentados na rua. Do pouco que pude captar dos diálogos, noto que eles falavam de trabalho e dos patrões, o que é bem comum. Peão adora falar, bem ou mal, dos patrões.

Os do segundo grupo estavam bebendo cerveja e deveriam estar esperando eu e os rapazes do primeiro grupo sumirem para fumarem alguma droga e, assim, se sentirem como grandes transgressores das leis. O assunto era a festa de ontem à noite, as garotas que um ou outro pegou, e outros temas semelhantes.

O que posso filosofar sobre esses dois grupos?

Deixo essas cenas sumirem da minha mente, como se fossem cenas de uma novela de TV. Na verdade, são dois grupos pertencentes a uma mesma realidade: todos somos atores da grande novela da vida.

Geralmente as cenas do dia me oferecem elementos para dias e dias de filosofia. Contudo, cenas de trabalhadores (como eu) ou de jovens ociosos e alienados me deixam sem imaginação e sem vontade de pensar e meditar.

Passemos para outro exemplo.

Intromissão número três do escritor intrometido (e levemente pleonástico): O leitor e a leitora devem também ter notado que o Joelson parece muito mais culto do que um simples zelador de prédio. Ocorre que ele é uma exceção à regra geral dos zeladores de prédio. Ele é um zelador de prédio culto, embora não entenda nada de filosofia européia. Além disso, o texto é meu, o personagem foi criado pela minha mente insana e vocês não têm escolha senão aceita-lo do jeito que ele é. Vai aqui a recomendação: Se não gostam de personagens distantes da realidade, joguem este texto fora.

Outro exemplo que eu uso para filosofar?

Cães

Na caminhada eu encontro vários cães de rua. Alguns são cachorros que vivem nas ruas, outros são deixados na rua pelos donos para que satisfaçam suas necessidades fisiológicas e depois voltem para casa.

Fiquei amigo de um vira-lata preto que eu encontro no quinto quarteirão toda noite. Levo sempre um pedacinho de carne para ele. Embora ele tenha dono (é cachorro do guarda noturno de um outro prédio), esse bicho me adora.

Fico sempre pensando em como seria bom viver só, com apenas um cão, uma TV e uma boa garrafa de pinga. Já fiquei dias imaginando como seria ter vários cães, mas morando sozinho.

Um dia eu vi um garotinho de uns dez anos maltratando um gato.

Eu odeio gatos

Mas, maltratar bichos, mesmo gatos, é algo intolerável para mim, mesmo sendo praticado por uma criança.

Peguei o moleque pela orelha e o levei para a mãe.

Expliquei o caso. A mãe ficou brava comigo e não com o filho.

Então resolvi ser mais duro ainda

Vi o moleque de novo agredindo um gato e ele ria da minha cara. Claro, com o aval da mãe qualquer menino se sente como se fosse um Rambo.

Liguei para um amigo meu que era policial militar e odiava também garotos que maltratavam animais. Ele pegou o moleque em flagrante e o levou para a mãe. Eu fui junto. A mãe veio a favor do filho, e contra o policial e a mim. O meu amigo policial disse para a mãe que se ele pegasse o moleque novamente maltratando animais na vizinhança ele a prenderia e mandaria o filho para o Conselho Tutelar.

Não passei vontade. Olhei para o garoto e soltei uma gargalhada de dar gosto.

O moleque chorava copiosamente porque a mãe lhe aplicou uma surra homérica.

Pelo menos, nunca mais o vi maltratar bicho algum.

Interferência do escritor número quatro: Gostaram da atitude do meu Joelsinho? Ele é política e ecologicamente correto! Um cara atento aos ecossistemas e um ecologista nato. E isso mesmo sendo um reles zelador de prédio. Notem que ele teve o cuidado de não agredir o garotinho que maltratava bichos. Ele pegou o moleque pela orelha, mas isso foi apenas para levá-lo até a sua mãe. E a gargalhada foi só uma representação bem humorada da Justiça. Tenho orgulho da minha criação. Joelson Carlos, esse zelador de periferia, está se saindo um grande especulador e um grande amante da natureza. Estou feliz com esse texto.

Costumo filosofar sobre tudo o que vejo nas minhas caminhadas. Por exemplo, já notaram o estado em que estão as ruas e as calçadas na periferia?

Ruas cheias de buracos e mal asfaltadas.

Calçadas mal feitas e onde se tropeça a todo instante.

E quando chove? Tudo fica pior.

Sim, isso também é filosofar. Filosofar sobre a precariedade da vida na periferia de uma cidade.

Vejo aqui um muro com propaganda política.

O que se faz pela periferia?

Onde estão eles quando eu tropeço na calçada?

Intromissão do escritor número cinco: Perdoem-me, mas o “Joelsinho”, depois de ter sido ecologicamente correto sobre os animais, resolve ser politicamente incorreto. Por que um zelador vai querer se meter com a política local? Ele que cuide da sua vida medíocre de reles zelador de prédio e está bom demais. Odeio esses personagens que ficam se metendo nas histórias que nós escritores queremos escrever. Eu tenho um cargo de confiança e trabalho em uma repartição pública muito importante. Não posso me dar ao luxo de escrever textos com personagens rebeldes e que querem me prejudicar. Vou acabar com essa tendência comunista do Joelson agora mesmo!

Joelson: Vai nada

Escritor: Vou sim

Intromissão número seis: Vou construir o diálogo entre o Joelson e este escritor decente que vos escreve de maneira que vocês possam notar quem é quem. Não quero que vocês – e meus chefes – me confundam com o tal zelador.

Joelson: Quer dizer então que você me cria e quer mandar na minha vida?

Escritor: Criatura, todo escritor tem um pouco de Deus. Não reparou ainda? Somos seres sobrenaturais.

Joelson: Isso é injusto!

Escritor: E quem te disse que eu sou justo?

Joelson: Eu tenho, como personagem, a liberdade de ser quem eu quero ser.

Escritor: Não tem não! Você saiu da minha imaginação. Não é uma pessoa para ter direito e liberdade.

Joelson: E seu eu entrar em greve?

Escritor: Greve? Faz-me rir

Joelson: Ora, eu posso ficar onde estou e mudo.

Escritor: Eu coloco palavras em tua boca, Joelson. Posso te transformar em um zelador homossexual, por exemplo. Quer que eu te demonstre?

Joelson: Terei que ser um zelador exemplar, então?

Escritor: Não, terá que ser o zelador que eu criei e não o zelador que você quer ser.

Joelson: Não serei não.

Escritor: Vai me desafiar?

Joelson: Vou

Intromissão final do escritor: É raro acontecer, mas o leitor está diante de um motim de uma personagem contra um escritor, seu criador. Estou profundamente abalado com o que tive que fazer: Matei o Joelson, literariamente falando, é óbvio. Precisarei rever os meus conceitos e me preparar psicologicamente quando for escrever novamente. Nesta altura do desenrolar da trama do meu texto, só posso lhes informar que termino abruptamente esta narrativa por total falta de condições técnicas.

Despeço-me

Ponto Final.