sexta-feira, 23 de setembro de 2011

"O Gerente", Opus 14, by Fábio Zafiro Filho



O Gerente está sentado atrás de uma grande mesa de escritório em estilo clássico e nobre, toda abarrotada de papéis e pastas. Ao lado dela existem arquivos também cheios de documentos. À frente da mesa há uma cadeira de madeira muito simples virada diretamente para o Gerente.



Trata-se de um escritório de alguém muito ocupado e importante.



GERENTE (lendo uma folha de papel): Esse rapaz é um completo idiota. Matou a sogra, a esposa e, depois, se matou (e rindo) Ah, se isso acontecesse nos meus tempos de cidadão mortal.



O Gerente sorri, se levanta, e abre a primeira gaveta de um dos arquivos.



GERENTE (procurando algo nas pastas): onde está aquela pasta daquele outro imbecil? (puxando uma): Não, essa é de um assassino de mulheres (e joga a pasta de lado).



Três batidas bem fortes na porta e entra Sandoval. Esse personagem esquisitão é o secretário adjunto do Gerente. Está vestido com calça social bem folgada, camisa de seda branca e gravata preta; traz ainda uma caneta sobre a orelha esquerda e usa óculos bem grossos.



Sandoval entrou todo afobado e deixou a porta entreaberta.



SANDOVAL: Chefe, aqueles documentos do caso do estuprador assassino estarão com o senhor daqui a pouco. Estamos aguardando o Setor de Autenticação para a devida conferência.



GERENTE (fechando o arquivo e sentando na sua cadeira): Sandoval, onde você resolveu colocar a pasta daquele imbecil que matou a sogra e a esposa, e depois se matou? Aquele que deixou até uma carta melosa e romântica para a amante.



SANDOVAL (fazendo uma careta horrenda para se lembrar): Acho que o pessoal lá de baixo veio pegar a pasta para confirmar a pena que foi imposta ao réu.



GERENTE (esbravejando): Eu não sei onde vocês guardavam o cérebro quando ainda eram vivos. No lixo? Eu ainda não assinei a sentença, seus dementes! Não é para mandar a pasta do fulano lá para baixo (e se acalmando um pouco): E, outra coisa Sandoval, aqui não existe réu, porque não existe processo. O infeliz é condenado somente por estar aqui, compreendeu? A sentença é só para que o coitado ache que alguém ouviu a sua conversa fiada. São regras novas desse pessoal mais progressista.



SANDOVAL: Mas, por que só alguns casos vêm parar aqui?



GERENTE: Sandoval, todos tem o direito de apelar, mas só alguns o fazem.



SANDOVAL: Mas se todos são condenados, por que há possibilidade se apelar?



GERENTE: E aqui dá para se entender alguma coisa? Você já viu o Diabo ou Lúcifer se importarem com alguma coisa? Eles têm alguma consideração pelos seus funcionários? Não, eles inventam essas bobagens só para termos o que fazer. Isso aqui é um tédio! (diz isso e leva as mãos ao rosto).



SANDOVAL: Nenhum dos condenados consegue sair daqui?



GERENTE: Alguns, mas somente aqueles que recebem o indulto.



SANDOVAL (coça o queixo e franze a testa): Indulto?



GERENTE: (rindo) É. Você tem razão. Não dá para entender, mas vou tentar te explicar (olha para o arquivo): O pessoal lá da chefia geral, aqueles malucos que usam asas brancas, vêm algumas vezes aqui para tirar alguns coitados que estão para entrar na nossa instituição. Eles sempre chegam em cima da hora e com um negócio chamado Alvará de Misericórdia. A única saída que temos é liberar o sujeito.



SANDOVAL: Mas, por que é que temos que acatar essa ordem?



GERENTE: É esse povo com asas que repassa a nossa verba. Não se esqueça Sandoval, que o nosso departamento está lotado. Estamos reivindicando mais espaço, mas por enquanto não conseguimos nada. Lá em baixo está tudo confuso. Não dá nem para os condenados sentirem bem o que é estar aqui.



Entra, carregando muitas pastas, um funcionário com terno preto, gravata preta, lenço preto e capa vermelha e preta. É Mefistófeles, uma espécie de agente especial que trabalha em outro departamento.



MEFISTÓFELES: (fechando a porta atrás de si) A porta estava entreaberta (e para o Gerente) Desculpe interromper a interessante conversa de vocês, mas precisamos trabalhar.



GERENTE: Mefisto, que é isso tudo?



SANDOVAL: É o caso daquele pedófilo homicida?



MEFISTOFELES: Sim. Enviaram para mim oitenta e sete volumes só com declarações de parentes, amigos e vizinhos. Estes são os dez primeiros.



GERENTE: Esses amigos e parentes estão vivos?



MEFISTOFELES: (sorri) Você pensou certo. É aquela velha mania de copiarem os arquivos da polícia dos viventes. Isso é que é ser vagabundo. Mas, eu já dei entrada no procedimento e vim ver se você consegue marcar para logo o depoimento do condenado.



GERENTE: Ele fez o requerimento mencionando que se julga injustiçado? Lembre-se dos termos do Decreto de Lúcifer.



MEFISTÓFELES: Sim, imagine que um pedófilo que estuprou mais de vinte crianças acha realmente que vai sair daqui (e, rindo): Vai marcar o depoimento para quando?



GERENTE: Daqui uns vinte minutos. Antes eu vou conversar com aquele metido que diz que tem direito a regalias. Recorda-se do caso?



Os três começaram a dar grandes gargalhadas.



SANDOVAL: Mais um novato! São todos muito engraçados.



GERENTE: Vai ser mais uma daquelas conversas difíceis.



MEFISTÓFELES: Boa sorte, gerente! (e para Sandoval): Ajude-me a descarregar todos esses volumes.



GERENTE (apontando um local no chão): Coloque ali, pois na mesa e nos arquivos não cabe mais nada.



Os dois colocam os volumes no chão e saem da sala. O Gerente começa a ler um volume que está em cima da mesa.



GERENTE: Senhor Oliveira e seu pedido de regalias (rindo): Acho que terei um bom divertimento hoje.



GERENTE (abrindo o volume e lendo em voz alta): Tenho um compromisso assinado com vocês (e cai novamente na gargalhada; e prossegue): Sou uma pessoa importante, tenho direito a tratamento especial.




O Gerente põe o volume de lado e fica rindo.



Transcorrem uns cinco minutos.




Batem três vezes na porta e entram Sandoval e o Senhor Oliveira, este último usando um terno claro, de Linho, e sempre muito sorridente.



SANDOVAL: Sente-se ali e o nosso Gerente irá lhe atender. Deseja algo mais?



SENHOR OLIVEIRA: Não, você é muito prestativo.



O Senhor Oliveira senta-se.



SANDOVAL: Muito obrigado pelo elogio. O senhor saberá como podemos ser muito prestativos (e piscando para o Gerente): muito prestativos mesmo.



GERENTE: Sandoval, você tem o que fazer, vá logo! Suma daqui!!! (disse o Gerente, aos berros).



Sandoval sai apressadamente.



O Gerente e o Senhor Oliveira ficam a sós na sala.




GERENTE: Vejo que o senhor fez uma solicitação de tratamento diferenciado. Por quê?



SENHOR OLIVEIRA (sorridente e com leve ar de satisfação): Bom, vou poder falar com mais calma para o Senhor. Não quis explicar tudo para reles funcionários: Eu, quando ainda estava vivo, fiz um contrato com um representante de vocês lá no mundo dos vivos por onde eu poderia fazer todas as minhas falcatruas, roubos, e demais delitos patrimoniais e vocês me dariam ampla cobertura contra qualquer tipo de punição por parte dos homens. Além disso, em caso de morte, eu teria direito a um tratamento especial aqui, por ter sido uma pessoa de confiança do seu chefe.



GERENTE: Eu tenho esse contrato aqui.



SENHOR OLIVEIRA (entusiasmando-se): Bom, bom, muito bom.



GERENTE: O senhor tem realmente direito a um tratamento diferenciado...



SENHOR OLIVEIRA (quase eufórico): Sim, sim.



GERENTE (olha o Senhor Oliveira bem nos olhos, sorri e fala acentuadamente, como um personagem de filme de suspense): MAS...



SENHOR OLIVEIRA (com ar de cautela): Mas o que?



GERENTE (folheando o contrato e com sorriso irônico): O senhor leu a cláusula 6.788 no item 32, alínea 42?



SENHOR OLIVEIRA (alterando-se): Eu não li contrato nenhum, pois meu secretário afirmou que o ajuste era idôneo.



GERENTE (indignado): E quem lhe falou que não é?



SENHOR OLIVEIRA (mais calmo): Ah, bom.



GERENTE: O senhor, no dia 26 de março, seis dias antes da sua morte, foi a alguma missa?



SENHOR OLIVEIRA: Claro, fui à missa com toda minha família.



GERENTE: Bom, a cláusula que lhe falei menciona que o tratamento diferenciado será cancelado se o contratante participar de algum ato religioso.



SENHOR OLIVEIRA (tremendo) Isso é impossível. Ninguém me falou disso.



GERENTE: E precisava? O senhor não pode barganhar com os dois lados. Nós exigimos exclusividade. São as regras traçadas pelo chefe.



SENHOR OLIVEIRA (apontando o dedo para o Gerente): Esse contrato é uma fraude. Vocês me enganaram. Eu teria deixado de ir à missa se soubesse da existência dessa cláusula.



GERENTE (lendo um trecho do volume e sorrindo): O senhor foi à missa mais de sessenta vezes no seu último ano de vida. Isso significa que o senhor resolveu se precaver e pedir auxílio do Chefão lá de cima. E isso é contra o que ficou contratado.



SENHOR OLIVEIRA (quase chorando): Eu fui forçado a ir às missas.



GERENTE: Forçado? O senhor rezou, pediu perdão, implorou (rindo com vontade): o senhor é louco? O senhor confessou para um sacerdote que assinou um contrato conosco?



SENHOR OLIVEIRA (cabisbaixo): Eu não tinha muita confiança em vocês.



GERENTE: Então por que assinou o contrato?



SENHOR OLIVEIRA (começando a chorar): ganância, egoísmo...



GERENTE: Isso. Nós gostamos muito de pessoas com vícios, gananciosas, cheias de orgulho e empáfia. O senhor é um contratante ideal, mas o chefe exige lealdade. É pena.



O Gerente carimba algo no volume do requerimento do Senhor Oliveira




SENHOR OLIVEIRA: Então, como fico?




GERENTE: Sua solicitação foi indeferida. Cabe ainda recurso para o Chefão, mas, por ora, o senhor já vai ter que ir para a ala provisória.




SENHOR OLIVEIRA (com raiva): Vocês não prestam. Vou acabar com isto aqui. Seus...seus...




GERENTE (sorrindo): Você é um anjinho perto dos sujeitos que já atendi aqui. Você se meteu com profissionais que trabalham sério. Não admitimos traição. Se quiser, recorra. Meu trabalho com você acabou.




O GERENTE grita: Segurança, Segurança.




Entram dois homens musculosos e com feições de feras, vestidos de preto e com coletes onde está escrito: “Demônio condutor de almas condenadas”.




SENHOR OLIVEIRA (dirigindo-se ao Gerente): Para onde me levarão?




GERENTE: Para o Setor de Execução de Penas, que depois irá lhe enviar para a ala provisória, caso recorra.




SENHOR OLIVEIRA: Qual a minha pena?




GERENTE: Lá eles te explicam. Mas o senhor vai achar interessante. Deve ser uma mistura de nosso melhor tratamento.




Os demônios algemam o Senhor Oliveira e o levam para fora e Sandoval entra.




SANDOVAL (esbaforido): Tem um cabra ai fora, vindo com um daqueles Alvarás.




GERENTE: Não acredito! Esse povo lá de cima é chato mesmo! Provavelmente vai me falar para tirar um idiota qualquer bem no meio de uma seção de chicotadas para levá-lo ao Paraíso.




SANDOVAL: Digo que você não está?




GERENTE: Não, débil mental, o chefe deles é onisciente. Vai saber que estamos mentindo.




SANDOVAL: Falo para ele entrar?




GERENTE: E que alternativa nós temos?




Sai Sandoval e pouco tempo depois retorna com um homem louro, alto, de terno branco e duas asas enormes.




ANJO: Olá, Gerente. Tenho uma determinação de Deus.




GERENTE: O que esse seu chefe poderoso quer?




ANJO: Vim liberar um condenado com um Alvará de Misericórdia.




GERENTE: Bom, isso todo o Inferno já sabe. Quem é o felizardo?




ANJO: É isso que esse lugar faz com as almas? Deixa vocês com todo esse mau humor? (e solta um risada estrondosa).




GERENTE: Prefiro a agitação daqui a aquela paz e aquele amor eterno.




ANJO: O que esperar de um Demônio. Onde está o seu tridente? Enferrujou? (dá outra risada, mas agora mais contida).




GERENTE: Anjos tirando sarro! É o que me faltava. É essa nova geração de anjos! Estou velho para este serviço (e olhando para o anjo) E meu tridente está no conserto.




ANJO: O nome do felizardo é o número 4.222.363.8555/00001.




GERENTE: Como é que é?




ANJO: Ah, me esqueci que aqui vocês estão ainda no sistema de arquivos e pastas. Lá no Paraíso é tudo organizado por computadores e números.




GERENTE: Logo teremos. Mas aí eu já estarei aposentando.




ANJO: Você deve conhecer o agraciado pelo nome de Aurélio Godofredo.




GERENTE: Quem? (põe a mão na testa): Vocês, anjos, estão cansados de saber que precisamos do nome completo do interno.




ANJO: Interno? (o Anjo cai na risada outra vez): Vocês dirigem um hospício ou um colégio interno? Bom, o nome é Aurélio Godofredo Positz.




O Gerente foi procurar na primeira gaveta do arquivo.




GERENTE: Sorte sua. A pasta dele está aqui ainda. Não foi para o Serviço de Penas Provisórias. Ali eles somem com documentos que é uma beleza.




ANJO: Não me interessa. Se vocês não encontrarem o agraciado, sabem as conseqüências.




GERENTE: Meu caro amigo alado, você sabe que eu sou o único nesse local que é realmente profissional e mantém os arquivos corretos. Nunca terei problemas com o teu Chefe.




ANJO: Você é raridade por aqui.




GERENTE: Eu sei. (abre a porta e grita): Sandoval!




Sandoval entra




GERENTE: Traga esse senhor aqui (e aponta para o nome escrito na pasta) Ele está livre. Vai para o Paraíso.




SANDOVAL: Certo.




Sandoval sai.




GERENTE: Como vão as coisas por lá?




ANJO: Todo mundo feliz e sorridente.




GERENTE: Vocês são estranhos (dá uma risada e prossegue) Não agüentaria viver com tanta paz.




ANJO: Estranhos são vocês. Eu só venho nesse lixo de lugar porque é meu trabalho.




GERENTE: Vocês precisam avisar quando vai sair um desses Alvarás. Depois aqui é que é bagunçado.




ANJO: Você conhece o meu Chefe. Ninguém sabe o que se passa na cabeça dele.




GERENTE: Pergunte para ele, quando você puder, por que ele criou isso tudo. Gostaria de saber.




ANJO: Quando eu tiver a resposta, te aviso.




Nesse momento, volta Mefistófeles:




MEFISTÓFELES: Quanta honra! Um emissário do Todo Poderoso por aqui!




GERENTE: Pare de ser bajulador, Mefisto.




MEFISTÓFELES: Ora, Gerente, nós temos que ser cordiais com a Chefia!




ANJO: Suas bajulações e lisonjas não me comovem meu caro Mefisto. Conheço as artimanhas dos Demônios. Tenho PHD em Demonologia.




MEFISTÓFELES: Esqueci que vocês têm cursos lá no Paraíso.




GERENTE: Deixemos de amenidades e vamos direto ao ponto. Onde está o cidadão dos 87 volumes de documentos?




MEFISTÓFELES: Aqui fora, aguardando!




GERENTE: Vamos aguardar o Sandoval trazer o felizardo para o nosso amigo Anjo levar para o seu destino e depois tomaremos o depoimento desse espertinho.




ANJO: Qual é mesmo a sua função aqui, Mefisto?




MEFISTÓFELES: Ora, o Doutor de Demonologia não sabe?




ANJO: Eu sei. Só queria que você dissesse pessoalmente para eu ter mais um ataque de riso.




MEFISTÓFELES (com a cara fechada): Sou Agente Especial.




ANJO (da uma gargalhada longa e depois, recupera-se): Agente Especial? O Diabo precisa de James Bond agora?




MEFISTÓFELES: Você sabe muito bem que minha função é apurar alguns casos mais específicos. O Diabo quer que determinados internos tenham tratamento especial.




ANJO: Como vocês são organizados! Estou pasmo!



Entra Sandoval com um rapaz tímido e que estava chorando.




GERENTE: Sandoval, você contou ao rapaz para onde ele vai?




SANDOVAL: Sim, mas ele parece não ter gostado




RAPAZ (contendo o choro): Eu não mereço ir para o Paraíso! Meu crime não tem perdão.




ANJO: Sorte sua, rapazinho bobo, que o Alvará de Misericórdia é irrenunciável. Só vem para esse lixo os condenados e não as almas puras que querem vir para cá por vontade própria.




GERENTE: Eu preciso me aposentar. Agora tem gente boa e honesta (faz cara de nojo) querendo ficar aqui achando que não merece o Paraíso.




ANJO: Isso é coisa comum. Basta dar um passeio lá fora com ele e o rapaz vai mudar de idéia rapidinho.




GERENTE: (com cara de nojo): Leve esse rapaz doido embora, Anjo. Não agüentarei essa choradeira nauseante mais tempo.




ANJO: Pode deixar.




O anjo sai, levando o rapaz consigo




GERENTE: Depois lá em cima dizem que aqui só tem doido. E esse rapaz o que é? Normal?




MEFISTÓFELES: Vamos ouvir o pedófilo e rir um pouco, Gerente.




GERENTE: Chama lá esse condenado, Sandoval.




Sandoval sai e volta com um homem vestido de calça social comum e uma camisa pólo verde.




GERENTE: Qual o seu nome? Para constar nos arquivos (e sorriu para Mefistófeles).




FLORIVAL: Florival de Santana Veiga




GERENTE: Qual o seu requerimento?




FLORIVAL: Vocês não vão escrever o que eu falo?


GERENTE: Não. Este é só um depoimento informal. Depois virão os juízes, advogados, tribunais e vários recursos e procedimentos.



MEFISTÓFELES (tosse, para disfarçar o riso): Seus direitos serão assegurados.




GERENTE: Vejo aqui mais de 87 volumes com orações e pedidos de parentes, amigos, todas elas pessoas dignas. Esse pessoal todo afiança que você é um sujeito decente e que nunca fez mal a ninguém.




FLORIVAL: Mas, é isso mesmo que eu sou.


GERENTE: Então, por que a polícia dos vivos identificou você como um pedófilo, estuprador e assassino?




FLORIVAL: Não faço idéia! Acho que me confundiram com outra pessoa.




GERENTE: Você conhecia alguma daquelas vítimas?




FLORIVAL: Não.




GERENTE: Florival, o problema é que você não está no mundo dos vivos...




FLORIVAL: Sim, eu sei. Estou no Inferno, mas devo ir para o Paraíso através da Misericórdia divina.




GERENTE: Tanto o povo alado como nós temos nossa polícia secreta. Você sabia?




FLORIVAL: Como assim?




GERENTE: O Agente Mefisto aqui presente constatou que você está mentindo. Nós adoramos mentiras, mas somos profissionais e ninguém foge daqui.




FLORIVAL: Mas, eu não menti. Vejam as cartas e orações que fazem por mim.


GERENTE: Você é bom o suficiente para enganar a eles, mas não conseguirá jamais enganar nossos agentes.




FLORIVAL: Eu sou inocente.




GERENTE: Nenhum condenado que se sentou nessa cadeira disse o oposto.




FLORIVAL: Mas, vocês não têm provas




GERENTE: Quero lhe mostrar um dos novos avanços do Inferno: recebemos sempre um dossiê interessante do povo lá de cima quando eles concluem que o condenado JAMAIS deverá ir para lá.




FLORIVAL: Dossiê?




GERENTE: Sim, uma pasta com informações sigilosas sobre você




FLORIVAL: Eu tenho direito de saber o que consta nessa pasta




GERENTE: Claro, aqui tem um decreto do Chefe lá de cima indeferindo o pedido de Misericórdia (e começando a rir).




FLORIVAL: Por que Deus fez isso?




GERENTE: A polícia secreta dos anjos fez uma investigação completa sobre o caso e encontraram várias provas sobre a sua culpa.




FLORIVAL: Que provas?




GERENTE: Olha, eu detesto esse povo que usa asinhas, mas eu adoro quando eles provam que o dito cujo é culpado. Eles são bons nisso.




FLORIVAL: Que provas eles têm?




GERENTE: Seu pedófilo bobinho, você acha que o povo lá cima não tem como descobrir os seus crimes? O Chefe lá de cima é onisciente e, além disso, tem uma rede bem grande de informantes.




FLORIVAL (tremendo): Mas, as orações e os pedidos não servem para nada?




GERENTE: Servem, quando o delito é pequeno. Ai uma ajudinha dos parentes e amigos é válida. Mas para grandes pecados e atos contrários a lei mosaica são completamente inúteis.




FLORIVAL: Deus vai condenar um inocente ao Inferno?




GERENTE: (esbravejando): Você acha que somos idiotas? Eu não sou um delegado ou juiz do mundo dos vivos. Lá você pode jogar esse papinho besta de inocência que provavelmente algum imbecil vai acreditar. Aqui nós sabemos tudo. Não adianta tentar disfarçar.




FLORIVAL: Eu juro por tudo que há de mais sagrado que sou inocente.




GERENTE: (caindo de rir): Jura?




FLORIVAL: Vocês não têm provas




GERENTE (agora mais sério): As suas vítimas são excelentes testemunhas, não acha?




FLORIVAL: Como assim?




GERENTE: Meu caro estuprador cretino. Você está acostumado com o mundo dos vivos, onde os mortos não podem falar e contar quem foi o autor dos crimes. Aqui nós podemos contar com o testemunho deles. Foi isso que os Anjos fizeram.




FLORIVAL: Essas vítimas mentem.




GERENTE: Os agentes secretos de Deus também têm acesso ao que você viu, ouviu, e pensou durante toda a vida. Seus pensamentos te comprometem.




FLORIVAL: Vocês estão usando provas ilícitas.




GERENTE: Ilícitas para quem? Para a lei dos humanos ou para a lei do Chefe lá de cima?




FLORIVAL: Deus jamais permitiria isso.




GERENTE: Claro, você determina o que ele deve ou não fazer. E agora está bravinho porque descobriram sua armação ridícula.




FLORIVAL: Cometi os crimes sim, mas vou anular esse processo e sair daqui rapidinho.


GERENTE (cai na gargalhada juntamente com Sandoval e Mefistófeles): Pode me dizer como pretende fazer isso?


FLORIVAL: Exijo advogado.



GERENTE: Meu caro, a Justiça Divina é rigorosa e nenhum advogado poderia resolver o seu caso, pois foi Deus mesmo quem vetou sua entrada no Paraíso.




FLORIVAL: Mas eu assinei um requerimento aqui no Inferno dizendo que me sentia injustiçado.


GERENTE: É esse o nosso procedimento geral, mas no seu caso a decisão não é proferida aqui. Já veio lá de cima e Deus negou sua entrada no Paraíso. Portanto, você tem que ficar aqui.


FLORIVAL: Vou recorrer.




GERENTE: Quando vem dossiê lá de cima, o Inferno deixa de ter competência para decidir o seu caso. Nós apenas homologamos a decisão de Deus. Você vai recorrer de uma decisão dele? Para quem?




FLORIVAL: Vou pedir reconsideração




GERENTE: As decisões do Chefão são definitivas e imutáveis. Imagine que problemas ele causaria se resolvesse voltar atrás no ato da criação, por exemplo.




FLORIVAL: Vou clamar por Misericórdia




GERENTE: Você já fez isso e ele indeferiu. Agora já é tarde.




FLORIVAL: Ele não leu todas essas orações, preces, e pedidos dos meus amigos e parentes?




GERENTE: Eu não gosto do chefe lá de cima, mas eu sei que ele sabe ler. E leu tudo aquilo que você e seus amigos e parentes apresentaram. Não se esqueça bobinho, que ele é perfeito.




FLORIVAL: Não aceito essa decisão.




GERENTE: Era o que eu já imaginava (e para MEFISTÓFELES): Chame o pessoal do Choque e das Operações Especiais.




FLORIVAL: Como?




Mefistófeles sai e rapidamente volta com um grupo de dez demônios com chifres, vestidos com farda vermelha, com tridentes bem afiados e escudos de ferro.




LÍDER DO GRUPO: Senhor FLORIVAL, temos ordens diretas do Sub-Secretário de Lúcifer para levá-lo algemado para o setor de penas para pedófilos, estupradores e similares.




GERENTE: Sua pena será executada.




FLORIVAL: Para que fui ouvido então?




GERENTE: Por dois motivos. Eu, Sandoval e Mefisto queríamos rir. E, além disso, precisávamos aguardar o pessoal do Choque e das Operações Especiais.




FLORIVAL: Isso foi humilhante. Nunca fui tão insultado antes.




GERENTE: Excelente. Esse é o nosso pacote VIP aqui no Inferno. Tenha uma eternidade de muitos sofrimentos por aqui. Até breve.




Florival começa a gritar, tentando fugir, mas foi algemado e controlado pelos demônios.




GERENTE (para Sandoval e Mefistófeles): Eu não perco esses atos de desespero dos condenados quando percebem que vão efetivamente ficar por aqui. Adoro ver o sofrimento nos olhos deles.




SANDOVAL: Como é que os Anjos conseguem olhar para aqueles agraciados dóceis e com muito amor no coração? (faz cara de nojo) São loucos.


GERENTE: Eles são anormais.



MEFISTÓFELES: Rapazes, vamos acompanhar o pessoal e ver a chegada do pedófilo ao setor de penas? É ali que acontece a parte mais engraçada.




GERENTE: Vamos, o próximo condenado só chegará mais tarde. (e para Sandoval): Tranque a porta quando sairmos. Não quero que nada suma daqui. Não pretendo ser punido pelo Chefe lá de cima por falta de alguma documentação.




Os três saem e Sandoval tranca a porta.