sexta-feira, 16 de outubro de 2009

"Grande Autoridade", Opus 03, by Fabio Zafiro Filho

Havia muita gente no auditório naquela sexta-feira chuvosa de Outono. Os lugares estavam todos ocupados e tinha muitas pessoas em pé disputando milímetros de espaço para obter uma melhor visão.

A ansiedade era a tônica daquele momento. Afinal, o pronunciamento daquela autoridade era esperado há vários dias.

Era um grande evento: A imprensa toda estava ali, embora se resumisse apenas a jovens repórteres dos jornalecos da região, meia dúzia do pessoal das rádios locais com seus gravadores e uma equipe de reportagem, enfadada e chateada, de uma emissora afiliada a uma grande rede de TV nacional.

Personalidades locais também estavam presentes: o prefeito local e seu séqüito de asseclas, secretários, burocratas e outros tipos de sanguessugas; membros do legislativo municipal e assessores; o juiz e o promotor de justiça da comarca; advogados, médicos, engenheiros e demais profissionais liberais; lideranças estudantis e sindicais; membros de grupos assistenciais, entidades religiosas e de preservação do meio ambiente, grupos raciais, além de outros representantes da sociedade civil local.

Muito barulho, como era costume em eventos desse tipo.

O pronunciamento estava marcado para as três horas da tarde e já havia gente no recinto desde as onze da manhã.

Alguma movimentação e um grupo de senhores engravatados se aproximou da mesa onde aquela autoridade discursaria. Eram pessoas muito sérias, compenetradas, com suas valises e computadores de última geração e todos eles com aquele ar de “intelectuais de Harvard indo falar com idiotas” que vários cientistas e burocratas ostentam.

Quem abriu a cerimônia foi o presidente da associação dos comerciantes local: Sr. Amarildo Rosa, dono de uma importante rede de papelarias, quase falido.

Mas a abertura do cerimonial seguiu aquele “protocolo” nauseante e enervante de citar todas as personalidades políticas, civis e militares (sim, estavam lá também representantes das Forças Armadas, mas com a mesma boa vontade e dedicação que um árabe teria em um “bar mitzvah”). E tais pessoas eram sempre mencionadas com grandes elogios e encômios, se fossem do mesmo bloco político ou com acusações e ataques pessoais se forem do grupo rival.

Depois disso, seguindo o roteiro da peça teatral da política cotidiana, veio o convite para que algumas de tais personalidades compusessem a mesa, sempre como se estivessem convidando a pessoa a se sentar com Deus personificado e seus anjos.

Os que foram chamados a ocupar os assentos na mesa foram: o prefeito, o presidente do legislativo da cidade, o juiz, o presidente do Rotary, e o decano dos advogados da cidade, o Dr. Siqueira Pedrosa, este último já meio senil.

O Sr. Amarido, depois de composta a mesa passou a palavra para o Prefeito.

O Prefeito da cidade era uma velha raposa política e um hábil orador. Começou falando do prazer de ter aquela autoridade ali presente, contou os fatos notórios que envolviam aquela ilustre autoridade e aproveitou para narrar os grandes projetos do seu governo. O político conseguiu transformar o que ele disse que seria “uma palavrinha antes da autoridade falar” em um discurso tipicamente eleitoreiro.

Depois disso, o Sr. Amarildo passou a palavra para o Dr. Siqueira Pedrosa, o grande decano da advocacia local. Ele sempre discursava em ocasiões semelhantes.

O advogado era um erudito. Conhecedor profundo do Direito, da Filosofia, da História, das Letras, do Latim, do Grego e de mais seis línguas. Era o presidente da Academia de Letras da cidade (que tinha apenas dez membros) e era professor universitário aposentado. Contudo, seus discursos eram um convite a uma boa soneca com lindos sonhos. Indo de textos gregos do grande Platão, passando pelos latinos com o estoicismo de Cícero, falando também sobre Kant, Hegel, Proust e Dostoievski, o grande jurista, depois de minutos torturantes chegava ao final da sua exposição, e geralmente a terminava citando Rui Barbosa. O problema não era o teor do discurso, mas sim a voz melíflua, sonora e aveludada do advogado e a sua forma de falar parecida com a de quem narra um “conto de fadas”. Era um acalanto para os ouvidos daquele público pouco acostumado com os discursos forenses.

Terminada a exposição do Dr. Siqueira Pedrosa e cedidos alguns minutos para alguns desavisados acordarem, o Sr. Amarildo resolveu passar a palavra ao “chefe da comitiva da Autoridade”, Dr. Atanael dos Santos Verkoswiack Bruges.

Esse doutor era um biólogo que não usava nenhum alfabeto conhecido. Só fazia uso da nomenclatura específica, equações e termos que só se liam em revistas e jornais especializados e que raramente apareciam por aquele fim de mundo. O público presente ora dormia, ora ficava com ar de quem estava vendo uma aparição demoníaca, um extra-terrestre (tentando contato, mas falando em sua língua natal) ou um canibal dizendo que o fogo estava aceso e que em dez minutos todos seriam cozidos em fogo brando, com molho de alcaparras.

Findo o discurso “ecológico” do jovem biólogo (sim, apesar do nome de cientista da Segunda Guerra Mundial, ele tinha pouco mais de 25 anos de idade), o Sr. Amarildo observou o texto com o restante do ritual da cerimônia.

Mal o Sr. Amarildo ia passar a palavra para o próximo orador, um grupo de pessoas gritando fora do recinto interrompe a cerimônia. Era um grupo de manifestantes que queria reivindicar do prefeito e do presidente da câmara o conserto de uma rua em um bairro da cidade. Como eles teimavam em ficar criando embaraços, o Sr. Amarildo aceitou receber no local um representante do movimento.

O manifestante (jovem, sujo de tinta e com cara de homem-bomba) fez o seu discurso também. Usou um dialeto parecido com o português, repleto de erros gramaticais. Os argumentos que ele utilizava eram de uma incoerência lógica flagrante, e sua oratória era recheada de expressões de efeito como “vamos à luta”, “classe operária” e outras semelhantes.

Depois desse discurso proletário (embora soasse meio ridículo um discurso proletário cobrando obras para tapar buracos em um bairro de classe média alta), o Sr. Amarildo ordenou a retirada das faixas, carro alegórico (sim, com moças dançando pagode e tudo mais. Criatividade não faltava para os movimentos proletários naquela cidade), carro de som e outras bobagens.

Pronto. Agora sim!! O momento pelo qual todos esperavam: A autoridade iria falar.

Um senhor calvo, levemente barrigudo, de bigode, se levantou e começou seu lento e polido discurso. Ele disse, em poucas palavras, que a autoridade não tinha como vir ao cerimonial e mandou ele, Dr. Artur Fontes Brigadeiro, para representá-lo e falar para o povo e autoridades locais em seu nome. Foi somente isso o que esse ilustre substituto conseguiu falar!

Foi o fim!

Foi como se arrancassem um pirulito da boca de uma criança faminta, e que nunca viu doce na vida. Todos começaram a reclamar, com veemência. Alguns chegando a impropérios bem duros, ofensivos e de baixo calão. Ouviam-se termos como “ultrajados”, “isso não se faz”, “queríamos ouvi-lo” e por ai foi.

Os doutores e burocratas deram de ombros e voltaram para o hotel, onde pegariam ônibus para o aeroporto na capital do estado.

No dia seguinte, a repercussão do ocorrido: o Prefeito mandou um ofício ao governador sobre a autoridade “omissa e que olha com pouco caso a nossa cidade”; o Legislativo votou e aprovou uma Moção de Repúdio àquela autoridade; os jornalecos locais atacaram pesadamente a autoridade e os tablóides sensacionalistas locais trouxeram ao público certos fatos negativos da vida da autoridade como uma suposta acusação de pedofilia, um filho ilegítimo com uma sem-terra, desvio de dinheiro, evasão de divisas, corrupção, e outras bobagens do gênero.

Resumo da noticia no principal jornal da capital do estado:

MAL ESTAR"

Da reportagem local - O Dr. Alfredo Maciel de Arruda, por motivos ainda não esclarecidos, não pode comparecer a um evento na cidade interiorana de São José da Ribeirinha e mandou em seu lugar um substituto para representá-lo na cerimônia, Dr. Artur Fontes Brigadeiro. A cidade ficou perplexa e se sentiu ultrajada pela ausência dessa autoridade. A autoridade foi severamente repreendida pelo governador, que pediu desculpas à população local. O que ainda não ficou esclarecido é porque a população dessa cidade via tanta necessidade de um discurso proferido PESSOALMENTE por uma autoridade que iria falar exclusivamente sobre “As fezes humanas e sua relação com o meio ambiente”.