domingo, 6 de junho de 2010

"Três cenas fugazes do cotidiano", Opus 4, by Fabio Zafiro Fiho




CENA 01 - INDO PARA CASA



Sérgio desceu do carro e aguardou que o motorista do táxi abrisse o porta-malas. Retirou sua bagagem e pagou a corrida.

Estava finalmente indo embora para casa. Depois de longas semanas trabalhando em uma obra longe do lar, Sérgio estava feliz por poder retornar.

A Rodoviária daquela pequena cidade do interior estava quase vazia naquele momento. Eram seis horas da manhã.

Ele sentou em um dos bancos aguardando a chegada do ônibus que o levaria para casa. Estava com muitas saudades dos filhos e da mulher. Já havia telefonado avisando de sua saída e a turma toda o estaria esperando quando chegasse na sua cidade.

Sérgio também sabia que iria deixar muitos amigos ali e isso fazia com que ele ficasse triste. Aquelas pessoas o acolheram como um irmão e agora teriam que suportar a sua partida.

O trabalho foi árduo e difícil, mas Sérgio poderia agora comprar a casa que sempre prometera para sua mulher. A obra havia lhe proporcionado dinheiro suficiente para comprar uma casa pequena ou um apartamento.

A obra ainda lhe rendeu uma porção de novos clientes. Ele tinha agora vários projetos para desenvolver. Com tais projetos, Sérgio ganhará mais dinheiro e garantirá um futuro feliz para ele e sua família. O melhor disso tudo é que não precisaria viajar novamente.

Sérgio começou a observar o local onde estava.

Além dele, um jovem casal e uma senhora idosa aguardavam a chegada de seus respectivos ônibus.

Sérgio viu que a lanchonete da Rodoviária estava aberta e decidiu comer algo antes de entrar no ônibus. Ele não havia comido nada e não gostava de viajar de estômago vazio.

Levantou-se e seguiu para a lanchonete levando consigo a bagagem.

-- Pois não - indagou o moço, bocejando.

-- Me dê um Bauru e um café – respondeu Sérgio.

Um menino passou com um apito na boca, vestido com um uniforme escolar e gesticulando. Alguns funcionários riam e brincavam com ele e outros tomavam o apito dele e escondiam. O menino enlouquecia e com muito custo conseguia o apito de volta.

-- O que há com o menino? – perguntou Sérgio para o rapaz da lanchonete.

-- É meio doido da cabeça. Fica apitando a manhã toda e os guardas são obrigados a leva-lo para um albergue ou para a casa da avó dele.

-- Ninguém consegue controlar o garoto? – insistiu Sérgio

-- A gente até que gosta dele, mas é difícil aturar um moleque apitando no seu ouvido o dia todo. Tem vezes que ele até rouba uns doces ou algum dinheiro do caixa, se a gente não fica atento – respondeu o moço da lanchonete.

O menino tinha realmente um ar de louco. Parecia que não compreendia uma palavra do que lhe falavam. Só queria assoprar o apito e mais nada.

-- O senhor não sabe de nada. Isso aqui é um hospício. Tem um homem que vem pregar aqui ao meio-dia e à meia-noite, amolando os passageiros e espantando a freguesia. Quando chamam a polícia ele sai gritando tão alto que parece que está sendo linchado – comentou o moço da lanchonete.


-- Esses pobres coitados existem em todas as cidades e aos montes.

-- Mas, o senhor não sabe. Ontem o meu sócio estava aqui no meu lugar por volta das dez da noite quando um velho de seus setenta anos chega e diz que está querendo um suco de maracujá. O meu colega brincou dizendo que ele deveria estar é precisando de sexo. E o velho não convida o meu colega para ir para a casa dele para uma noite de sexo? – comenta o rapaz da lanchonete rindo muito.

-- É uma situação chata. E o que ele disse? – perguntou Sérgio

-- Que ele não jogava nesse time, que o negócio dele é mulher e só mulher. O velho acabou se desculpando e sumiu. – respondeu o moço da lanchonete.

-- Ele deve ter achado que o seu sócio estava dando uma cantada nele — comentou Sérgio.

Nisso chega o Bauru e o café. Sérgio paga e come rapidamente. Estava com muita pressa e muitas saudades dos filhos e da mulher.



CENA 02 - O DISTINTO SENHOR



Nem sempre a vida traz bons momentos, belos sorrisos e risadas estrondosas. Na verdade, os acontecimentos tristes são comuns e numerosos, o que faz da existência humana algo complexo e difícil de compreender.

Nisso e em outras coisas pensava aquele senhor vestido de calça escura, camisa branca e sapatos pretos. Esse homem coçava o nariz e, sentado no banco da praça, pensava na estupidez dos homens.


Recordava-se da sua existência triste e amarga, dos seus vícios, dos seus medos e dos acontecimentos. Sim, os malditos acontecimentos. Por que os fatos são tão importantes? Por quê?

Um jovem de seus vinte e poucos anos chega perto dele e pergunta:

-- Onde fica a Rua 07 de abril?

-- O que pretende fazer lá? – questionou o distinto senhor

-- Preciso ir ao banco pagar dívidas. E o senhor? Está só na mordomia, né? Deve ser aposentado e vive agora só descansando as pernas e filosofando. Eh, vidão – disse essa última palavra quase aos berros.

-- Vidão? – perguntou o distinto senhor, pasmo.

-- Sim, vidão. Enquanto o senhor fica ai sonhando com as conquistas amorosas do passado, eu tenho que pagar uma prestação atrasada do financiamento do meu carro e terei de pagar com juros e mais umas bobagens - disse, consultando uma papelada.

-- Como você sabe se eu não tenho problemas maiores que os seus? – perguntou o distinto senhor.

-- Problemas? O senhor? O que seria? Um reumatismo? Osteoporose? Diabetes? --- perguntava rindo o jovem.

-- Como vocês são tolos e estúpidos! Você acha que uma pessoa velha nunca teve problemas? – perguntou o distinto senhor, espantado.

-- Talvez, mas os problemas da sua época eram fáceis de serem resolvidos. Hoje temos muitos problemas difíceis e complexos que pessoas da sua época não saberiam resolver – respondeu o rapaz, com ares de PHD de Universidade estrangeira.

-- Espero que no futuro apareça um jovem e diga a você que esses problemas que você diz serem quase insolúveis eram coisas imbecis e que os problemas dele é que são complicados. Você erra, meu rapaz. Todos os problemas são complicados.

-- Me diga um problema da sua época que eu não possa resolver – desafiou o rapaz.

-- Tive vários problemas que vocês não têm e outros que vocês, com computadores, máquinas e botões, não conseguem resolver.

-- Fala um! – disse o moço, incisivamente.

-- A fome, a guerra, o medo, a opressão, o racismo, os crimes, quer mais?

-- Mas isso diminuiu na minha época – respondeu o rapaz

-- Não, esses problemas apenas se modificaram.

-- A humanidade evoluiu – disse o rapaz, mas meio sem ânimo.

-- Não, ela apenas se transformou, mas manteve velhos princípios e comete os mesmos erros. Os problemas continuam os mesmos, só que com roupas novas e outros nomes.

-- Mas, a vida de hoje é melhor que a vida na década de 40 ou 50.

-- Como você sabe? Você viveu nessas épocas? Provavelmente você leu o que um economista ou historiador idiota escreveu em um jornal ou em um livro escolar qualquer e acha que sabe comparar épocas tão diferentes.

-- Tá, meu senhor, o que realmente te aflige? Qual o seu problema? Afinal, o senhor fala como se tivesse problemas descomunais a ponto do meu problema com a dívida vencida ser algo completamente idiota.

-- Tenho sim. Vários problemas.

-- Estou ouvindo.

-- Quer saber qual deles?

-- O mais importante. Depois os menores. Pode ser assim

O jovem senta no banco ao lado do senhor.

-- Filho, os meus problemas podem até lhe soar simples, mas são complexos. Eu briguei com meus filhos, estou vivendo da ajuda de pessoas de bom coração, perdi minha mulher, todos os meus amigos já faleceram, e nada me resta nesta vida.

-- São problemas bem comuns para a sua idade.

-- Podem até ser comuns, mas fazem com que a minha vida pareça vazia e sem sentido. O único sentido que encontro é sentar aqui e me lembrar no passado: os passeios que fazia com meus filhos, o nascimento dos meus netos, o meu casamento, os meus carros, os meus amigos de infância e da mocidade, as festas...—nesse ponto o distinto senhor começa a chorar.

-- Mas, ninguém vem te visitar ou te manda uma carta? Vive sem ninguém?

-- Sem ninguém — diz o senhor, limpando o rosto com um lenço que tira do bolso - nesse mundo que você diz ser melhor, mas que para mim é um mundo louco.

-- Talvez realmente seja.

-- Não sou desse mundo de vocês. Sou daquele mundo antigo, perdido para sempre. Meu lugar é lá com minha mulher, meus parentes e amigos e não aqui com esses filhos idiotas e sem amor.

-- Nunca faria isso com meu pai.

-- Creio que você diz a verdade, pois aparenta ser um garoto bom – disse o velho, sorrindo para o rapaz, e depois prosseguiu - Mas, mesmo estando bem com meus filhos, eu me sentiria isolado.

-- Já quiseram te mandar para um asilo?

-- Já, por isso que sai da casa de um deles para nunca mais voltar. Alguns vizinhos meus me dão o suficiente para comer e pagam meus remédios e assim vou levando a vida.

-- Boas almas.

-- Sim, mas até quando serão boas almas? Sempre surge uma esposa encrenqueira, um cunhado chato que aconselha à pessoa de bom coração que eu teria que pedir dinheiro para o governo. É claro que, tempos depois da pessoa parar de me ajudar, o conselheiro irá lhe pedir um empréstimo.

-- Esse mundo é ruim.

-- Sempre foi. As pessoas idolatram o dinheiro, o orgulho, a vaidade, e deixam o amor como última opção. São uns tolos.

-- Desculpe-me, meu senhor, mas já são quase quatro horas e o banco irá fechar. Embora os seus problemas possam até ser piores que os meus, não posso ficar aqui conversando enquanto a minha dívida aumenta – disse o rapaz, se levantando.

-- Vá, meu filho. Continuarei aqui relembrando o meu passado e fugindo do meu presente.



CENA 03 - O VICIADO




O vício é, talvez, o maior problema da sociedade atual. O viciado é uma pessoa doente que deve ser tratada e não um pária, um delinqüente.

Todos podem ter vício.

Foi esta a lição que teve o Dr. Lacerda Castro, ilustre psicanalista, membro de várias instituições internacionais, Doutor em Psicologia pela Universidade de Bonn e professor universitário.

O Dr. Lacerda Castro tem consultório no bairro mais rico da Capital há mais de 17 anos, tendo 22 anos de profissão.

Um dia entrou em sua sala, para uma consulta, um senhor de 52 anos de idade, alto, calvo, aparentando estar muito calmo.

Depois de colher todos os dados do paciente, o Dr. Lacerda pede para que ele se deite, confortavelmente, no divã.

-- Doutor, tenho um problema – disse ele, deitando-se no divã.

-- Certo, diga qual é – respondeu o psicólogo, com calma.

-- Eu sou um viciado – disse, sem medo, o paciente.

O Dr. Lacerda já havia atendido uma infinidade de casos de drogas, álcool, cigarro, obesidade, depressão e casos parecidos. Sabia o que iria ouvir.

-- Como você se tornou um viciado? – perguntou o Dr. Lacerda, indo direito ao assunto.

-- Não sei, nunca via isso como um vício – respondeu o paciente – mas agora sei que estou viciado mesmo.

-- Diga: como começou? – insistiu o psicólogo.

-- Foi fácil, estava tudo diante de mim – murmurou o paciente – era muito fácil.

-- Você se tornou viciado com facilidade? É isso que você quer dizer? – pergunta o psicólogo.

-- Sim. Era bom, pois havia prazer. Todos fazem. É fácil. Está em todo lugar.

“Deve ser cigarro ou problemas sexuais.” – pensou o Dr. Lacerda.

-- Você gastava muito dinheiro com o vício? – perguntou o psicólogo

-- Não. Com o vício não

-- Então era um prazer fácil? – questionou o psicólogo.

-- Sim, era muito fácil – respondeu o paciente.

-- Diga-me sobre sua vida familiar – perguntou o psicólogo.

“Deve ser problema sexual. Homossexualismo ou algum desvio de comportamento” - pensou o psicólogo.

-- Sou solteiro, vivo sozinho, tenho namorada há seis anos. Tudo normal – respondeu o paciente.

“Homossexualismo, sem dúvida” – pensou o psicólogo – “ ele crê que é um vício“

-- Você tem amigos? – perguntou o Dr. Lacerda

-- Tenho vários: do trabalho, vizinhos... — respondeu o paciente.

-- Como é seu envolvimento com eles? – perguntou o psicólogo.

-- Bom, muito bom. Doutor, quando é que vamos entrar no assunto. Estou cansado dessas perguntas preliminares. —respondeu o paciente

“Ele mordeu a isca“ pensou o especialista

-- Essas perguntas são difíceis para você? – perguntou o Dr. Lacerda.

-- De forma alguma, mas é que estamos bem longe do meu vício — respondeu o paciente.

“Há algo errado. Vou deixa-lo falar diretamente” – pensou o psicólogo.

-- Diga então, qual é esse vício – perguntou o psicólogo.

-- Sou viciado em Televisão – respondeu o paciente. Ficou quieto por uns segundos e continuou – estou aliviado por ter dito isso.

“Acho que quem vai ter que fazer uma análise sou eu“ – pensou, brincando, o psicólogo.

-- Eu pensei que fosse algo sexual, mas você me surpreendeu. Por que acha que está viciado? – perguntou o Psicólogo.

-- Sexual? Nessa área eu estou bem. É a TV mesmo. Eu não vivo sem ela. Sou dependente dela.

-- Ninguém é dependente de um aparelho de TV. Isso não existe.

-- Então por que eu não consigo largar esse vício?

-- Me conte como isso começou

-- No começo, eu assistia TV somente como curiosidade. Ficava vendo os telejornais e as novelas, mas sem ficar seguindo os capítulos. Era algo normal e agradável e me dava muito prazer. Depois começou a ficar mais forte.

-- Continue

-- Vieram os filmes. Eu via todos, todos os tipos. Adorava, amava cada cena, ficava entusiasmado, até brigava com os bandidos. Era muito bom. Depois comecei a ver desenhos animados. Ai foi demais. Aqueles animais falando, aquelas histórias quase sem sentido, a fantasia me deixava doidão.

-- E depois?

-- Depois vieram os programas infantis: aquela bagunça toda com crianças gritando e chorando, apresentadoras, uma mais linda que a outra, e mais desenhos animados. Eu ficava em êxtase. Daí vieram os jogos de futebol e as corridas de Formula 1. Eu ficava cada vez mais ligado. Não conseguia ficar sem assistir. Cada jogo era como um antídoto para a dor da realidade.

-- E?

-- Daí eu passei para os programas de auditório: aqueles artistas dublando e cantando com playback se tornaram a minha única fonte de inspiração. Aquelas mulheres gritando no auditório; aquilo tudo me fazia delirar. Eu não podia viver sem aquilo. Depois vieram os programas de perguntas e respostas e todos os outros que se seguiram.

-- Continue. Fale tudo

-- Eu não vivia mais. Só pensava em TV. Só falava em TV o dia todo. As pessoas até ficavam bravas comigo e perdi algumas amizades. Mas a maioria das pessoas também é viciada como eu e todos ficam te empurrando para o vício.

-- Você tentou resolver esse dilema?

-- Tentei, mas acabei passando para coisas mais pesadas.

-- Crack, heroína? – perguntou o Dr. Lacerda, na tentativa de encontrar um problema mais normal de se resolver.

-- Doutor! Não, drogas não! Eu me vicei também em filmes pornôs.

O Psicólogo estava completamente confuso.

-- E como isso se deu? – perguntou o especialista

-- Primeiro eu pegava um filme por mês, depois passou para um por semana, depois para um por dia. Hoje vejo três por dia. Eu me viciei em ver aquelas cenas quentes.

-- Eu não te disse que havia algo sexual – disse o Psicólogo.

-- Doutor veja bem: Eu só assistia; eu ficava entusiasmado, óbvio, mas o prazer era o de assistir. Eu nem ligava para o sexo. Eu queria é ver aquelas cenas, todas as cenas, os corpos, os órgãos sexuais, os gemidos, tudo.

-- Que tipo de filme você via?

-- Todos. Filmes de heterossexuais, homossexuais, bissexuais, sexo com animais, sexo grupal, tudo.

-- E o que mais te interessava?

-- Sexo grupal. Cenas com mais de seis pessoas me deixava doido.

-- Mas você se excitava?

-- Não. Nem ereção eu tinha.

-- E o que te atraía nos filmes? Sem excitação, tais filmes deixam de ter qualquer atratividade.

-- Eu assistia para ver aquelas cenas, aqueles corpos se penetrando. É emocionante, mas não me excitava.

-- Você se excita normalmente?

-- Claro, com minha namorada.

A consulta havia terminado. Fora marcada outra consulta para dali a uma semana.

O Psicólogo não compreendia bem qual a doença do paciente. Teria ele alguma Neurose por vídeos ou seria uma afeição por imagens? Era, até aquele momento, incompreensível. Talvez, com mais umas duas consultas ele teria como saber qual o problema.

Cansado de trabalhar, o médico foi para casa assistir um programa de auditório, que ele não perdia por nada nesse mundo, e, depois, iria ver aquele filme pornô que ele havia alugado ontem. Iria ver o filme a noite toda. Também não poderia esquecer de assistir a novela das oito (eram momentos decisivos) e os filmes do final de semana.

Antes de ligar a TV ele pensou: “Que pena! Viciado nesse aparelho? Deve ser um psicótico”.