sábado, 3 de julho de 2010

"Nada mais é como antigamente", Opus 6, by Fabio Zafiro Filho


Era final da madrugada. Ouvem-se batidas na porta.

Serena abre a porta e seu marido entra em casa, cansado.

- O que foi, meu amor? Perdeu a chave?

- Acho que sim.

Valério senta-se.

- Você está realmente um caco. Relaxe um pouco – diz Serena

- Vou tentar.

Valério estava realmente deprimido. E isso já tinha algumas décadas. Sua vida era anormal. Era evidente. Não tinha como ser de outro modo. Mas, ele se questionava se tinha mesmo sido certo deixar-se levar por aquele momento, naquele passado remoto, quando resolveu se casar e ter filhos.

A situação de Valério pode parecer ao leitor, assim de inicio, comum. Uma pessoa normal, com problemas normais. Mas, não é bem assim. Há um ponto nessa história que precisamos esclarecer, senão toda a história não fará o menor sentido: Valério é um vampiro

Sim, meu caro e incrédulo leitor. Vampiro. Como o velho Drácula das histórias do cinema, mas só que Valério vivia a vida real e não na fantasia das telas.

Ele veio pra casa correndo porque já ia amanhecer e vampiros vivem somente à noite. Isso não é lenda não. É a mais pura verdade. Se eles permanecem acordados de dia podem morrer. Contudo, as causas dessa morte por ficar ao sol são mais reais: câncer de pele, que é fatal para um vampiro. Uma das raras doenças que conseguem levá-lo de volta às trevas.

Valério é imortal, como qualquer vampiro que se preze. Contudo, a imortalidade tinha limites, como o câncer de pele que acabamos de mencionar. Os escritores, cineastas e o povo em geral romantizaram esse aspecto da vida torturante de um vampiro. Ora, ele não vira cinza quando sai ao sol. Isso não passa de invenção de escritores e roteiristas.

Decididamente ele estava ficando velho. Tinha mil, trezentos e oitenta anos. Estava entrando em uma fase de sérios problemas psicológicos: tinha sonhos horríveis, vivia deprimido, tinha mania de se sentir perseguido por inquisidores medievais, e várias outras neuroses.

Quando chegou em casa, sentou-se em sua cadeira predileta e ficou pensando no dia que passou. Acabou dormindo.

Teve mais um dos seus sonhos. Hoje ele sonhava algo absurdo: Seu dente canino, que já lhe dera tantas glorias na vida, estava cariado. E ele sonhava que estava em um consultório dentário, extraindo o dente.

Acordou berrando.

- Pesadelos de novo, meu querido?

- Sim, preciso consultar o Doutor Sila

- Tem razão. O jantar está pronto. Venha comer!

Agora o leitor acostumado com as histórias de Hollywood irá estranhar. A comida servida é comum: arroz, feijão, salada. Contudo, o prato principal é o que interessava: Carne de bode praticamente crua e ensangüentada.

O leitor não está inteirado sobre o mundo vampiresco.

Atualmente, a comunidade de vampiros restringe e muito o uso de sangue humano. Há uma tendência de se evitar esse tipo de guloseima. Explicamos: Existem dois motivos: Os vampiros estão mais humanistas e o sangue humano perdeu, para eles, o charme de antigamente. Nos dias atuais, mordidas em pescoços incautos são reservadas para: recém-nascidos, dias importantes para a comunidade, aniversários, e outras festividades.

Valério tinha dois filhos

Ambos estavam à mesa

- Pai, por que carne de bode de novo?

- Porque é o melhor para você crescer

- Eu não gosto

- Come de uma vez

- Não quero

- Come logo, senão vai coagular e vamos ter que jogar fora.

- Valério, não desconte os seus problemas nas crianças – advertiu a esposa.

Valério levanta-se e deixa a comida no prato.

Senta-se de novo na cadeira e chora

A esposa senta-se ao lado e tenta consola-lo

- Você não sabe o que eu passo para conseguir essa carne para eles

- Sei que se esforça, mas que adianta descontar tudo neles?

- Hoje eu comprei a carne logo que escureceu. Mas, dois moleques começaram a me perseguir com estacas na mão. Quase derrubei a carne no chão.

- Estacas? Isso é coisa de antigamente. Não acabaram com essa mania de correr atrás da gente tentando cravar estacas nos nossos corações?

- O pessoal da Idade Média parou com essa mania. Mas esses garotos que ficam assistindo filmes ainda acreditam nisso e ficam me apavorando.

- Como você fugiu deles?

- Tive que me transformar em um morcego.

- Daí eles saíram correndo, aposto.

- Claro

- Ta explicado porque você perdeu a chave

Leitor amigo, as estacas não são tão eficazes assim. Tem todo um procedimento para cravar estacas nos vampiros. Cravar estacas comuns e de qualquer jeito faz apenas o vampiro ter um acesso de cócegas. O método exato para se cravar estacas em vampiros se perdeu. E mesmo que existisse algum ocultista ou estudioso de vampiros que soubesse realmente como usa-las, ficaria decepcionado. O procedimento é tão cheio de regras, fórmulas mágicas e gestos que ele preferirá esquecer o vampiro e voltar para casa.

Transformação em animais. Sim, é assim que o vampiro se sente mais vampiro. Contudo, Valério não tem sorte quando se transforma em animais. Só se dá bem quando vira um morcego. Quando vira cachorro, geralmente leva uma coça de outros cães. E por ai vai. Teve até uma vez que alguns bodes confundiram-no com uma cabra, mas não vamos contar aqui essa cena humilhante.

- Por que você não vai dormir mais cedo?

- O nosso caixão está arrumado?

- Claro

- Acho que vou tomar um banho antes.

Sim, vampiro dorme em caixão e, recentemente, os vampiros casados adotaram o uso do caixão de casal. O caixão é usado para dormir e também para o ato sexual.

- Sua mãe não disse que vinha aqui hoje? – lembrou Valério

- Sim, é verdade.

- Isso será uma tortura.

Vampiros têm sogra? Claro, nem eles se livram desse mal.

- Sua mãe deve ser descendente do Van Helsing!

- De novo esse preconceito porque a minha mãe não é vampira?

- Não, se ela fosse vampira eu a compararia ao Stalin, aquele fofo. Por que ela odeia vampiros?

- Ela não me odeia.

- Claro, ela é sua mãe. E ela não sabe que você se tornou vampira depois de casar.

Van Helsing existiu? Não, só no romance do Bram Stoker. Há preconceito dos vampiros contra os não-vampiros? Sim, eles se denominam uma raça superior, tal como os nazistas.

- Por que ela tem a mania de trazer aquela cruz horrenda

- É só para te provocar

- Eu sei, mas para que me provocar? Essa é uma atitude típica de sogra.

Cruz. Vampiro teme o crucifixo? Sim, ele tem medo, mas não tem nenhum efeito sobre ele. Não é como o efeito da Kriptonita no Super-Homem. O medo vem mais do fato de que, na Idade Média, o crucifixo vinha sempre seguido por um bando de fanáticos, do que pelo fato de que a cruz é uma das representações de Cristo. Os Vampiros não são seguidores do mal, são apenas agnósticos e estão nas trevas apenas por não terem provas da existência de Deus.

- Mas ela traz presentes para você.

- Sim, trouxe um bolo salgado delicioso...

- Tá vendo

- ...recheado com alho

- Querido, aquilo foi uma brincadeira.

- Tanto que você sabe no que resultou.

Alho. É um veneno para o vampiro. Não, o alho não mata o vampiro, só o afasta. Por que? Simples, o intestino delicado do vampiro não tolera o alho e, consequentemente, quando ele o ingere tem uma magnífica, abrangente e explosiva diarréia. Ao ver o alho, o vampiro se afasta, pois se recorda das dores de barriga, e dos longos tempos perdidos no banheiro. Os vampiros, em virtude de sua dieta baseada em sangue, têm um intestino muito delicado e que não tolera alho.

- Amor, faça o seguinte: fique lá no quarto e eu recebo a mamãe aqui embaixo.

- Você é sensacional. Grande idéia!

- É, eu sei.

Valério corre e vai para o quarto.

Toca a campainha.

- Oi, mãe

- Olá, minha filha. E o seu marido?

- Está indisposto.

- Algum sangue podre que ele bebeu?

- Mãe, a senhora também – disse Serena, com leve toque de raiva – precisa parar de criar caso com o Valério.

- Só porque ele é da Transilvânia?

- Mãe, ele é vampiro, mas não é da Transilvânia.

Os vampiros não vêm, necessariamente, da Transilvânia. Isso nasceu na história fantasiosa sobre o Conde Drácula. Vampiros existem em todos os lugares. Não existe uma “pátria” dos Vampiros. Eles são como os ciganos, por exemplo.

- Vampiro! Minha filha casada com um vampiro!

- Já conversamos sobre isso, mãe.

- Ta, estou tentando me conformar. Por falar nele, onde ele está?

- No quarto

- Dormindo?

- Descansando

- Seu marido nega a raça. Nem vampiro ele consegue ser. Não tem cara de vampiro. Parece, quando muito, um zumbi. Tanto que está dormindo.

Os vampiros não são todos iguais ao Conde Drácula. Nem todos têm aquele estilo “Família Adams”. Alguns resolvem se apresentar de uma forma mais amena, sem olheiras, pele esverdeada e cadavérica, cara pálida, e outras características que marcam a espécie.

- Na verdade eu resolvi vir aqui para fazer um teste. Queria ver a reação dele à água benta.

- Mãe. Meu marido não é um rato de laboratório.

- Concordo, é um morcego de laboratório.

- Mãe

- Tá, mas água benta queima mesmo ele?

Essa pergunta nós respondemos. Não, outra lenda urbana. Isso surgiu porque algumas pessoas usavam água oxigenada como água benta. E vampiros, em razão dos seus problemas de pele, não toleram água oxigenada.

- Mãe, se você resolver testar isso, eu conto para todas as suas amigas com quem a senhora teve sexo pela primeira vez na vida.

- Você não seria tão má assim

- Se você for testar essa água no meu marido, eu seria sim.

- Pois bem. Vou embora. Vejo que sou “persona non grata” nesta casa de vampiros e Dráculas.

- Adeus

Serena fecha a porta e depois sobe as escadas

Entra no quarto e encontra o marido dormindo no caixão, já de pijama. Sim, vampiro usa pijama, como qualquer pessoa normal.

Além dos problemas causados por sua mãe, que sempre foi contra o casamento, Serena sabe que é duro para o seu marido viver nessa época atual. Tudo é diferente.

Não existe mais aquele romantismo de morder o pescoço de uma pessoa indefesa. Expliquemos: A mordida não causa a morte de ninguém. Outra lenda. A mordida de um vampiro é como a picada de um pernilongo: anestesia para extrair o sangue.

Nesse tempo de hoje ninguém consegue voar mais sossegado.

É uma época triste para os vampiros.

Nada mais é como antigamente.

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