sábado, 3 de julho de 2010

"Personagem Rebelde", Opus 5, by Fabio Zafiro Filho


Meu nome é Joelson Carlos...

É um nome fictício. Acabei de inventá-lo agora mesmo. Sou uma pessoa criativa. O nome estava apenas se formando na minha mente e acabou como que pulando no texto, como se fosse um daqueles atletas de salto olímpico.

Vocês leitores devem estar pensando: Por que será que esse escritor demente necessita de um nome fictício? Ele pretende delatar algum crime? Fazer algum relato erótico? Deseja revelar segredos da máfia italiana?

A minha resposta é: Não. O que eu vou relatar aqui deve ser contado por uma pessoa qualquer. Sim, eu sei que eu sou uma pessoa qualquer, um escritorzinho bem medíocre. Contudo, senhoras e senhores leitores ávidos por histórias atraentes, cultas e elegantes, eu preciso de um herói – e classifico o Joelson Carlos como um herói somente para me sentir como um grande romancista – que seja anônimo, impessoal, quase ignorado.

Bom, alteremos agora para a salutar narração em primeira pessoa, pois é o Joelson Carlos, e não esse escritor pavoroso que agora escreve, quem irá relatar os acontecimentos. É claro que eu – escritor poderoso, autoritário e dono da verdade – irei intervir toda vez que for necessário ou quando sentir vontade.

Meu nome é Joelson Carlos. Moro e trabalho na periferia. Sou um simples zelador de um prédio de classe média. Todo dia eu saio do trabalho e vou a pé para minha casa. Não é longe não! São apenas alguns quarteirões de distância. Volto para casa todo dia andando porque, desse modo, o condomínio economiza no vale-transporte. Mas, é melhor assim, porque eu não suporto andar de ônibus ou de bicicleta.

A melhor parte do dia é quando estou indo ou vindo do trabalho. Em casa não tenho paz. Tem a minha mulher brigando comigo todo santo dia por milhares de problemas bobos, os filhos chorando, gritando e fazendo todas aquelas coisas chatas que as crianças fazem, as contas, os vizinhos, os parentes, os animais de estimação, e tudo o mais que um pai de família tem que suportar. No trabalho então é pior ainda: o síndico dando bronca em mim vinte e cinco horas por dia, os condôminos reclamando a cada minuto, crianças jogando bola no vizinho e quebrando janelas, brigas entre locatários e condôminos e mais um monte de coisa para tirar a paciência de um pobre coitado como eu.

O que me sobra? Só a minha caminhada.

A sensação que tenho quando saio do serviço é quase como a de um orgasmo...

Intromissão número um do escritor: Perdoem-me a interferência já logo no inicio, mas preciso lhes avisar que tenho mania de soltar umas piadinhas no meio do texto. Portanto, alguns efeitos histriônicos e um pouco de comicidade serão incorporados ao relato do Joelson. Em si, o meu herói é um tanto enfadonho, mas não me custa inserir na sua fala um pouco de humor refinado. Ai ele passará a ser um personagem mais profundo, psicologicamente falando. Bom, essa profundidade pouco me importa.

Voltemos ao Joelsinho:

Sim, um orgasmo. Ao colocar o meu pé na rua, sinto como se tivesse tirado dos ombros todo o peso do mundo. E ai eu entro em mundo místico e quase religioso.

O que tem de bom nessa minha caminhada?

Querem saber?

Hoje estou voltando para casa. Vocês querem pegar uma carona?

Pronto.

Sai do trabalho.

Fora do condomínio, eu olho para frente e sigo adiante.

Ando devagar, sem pressa.

Logo na esquina tem uma ruazinha para atravessar. Essa rua é movimentada e, a cada mês ou quinzena, há um acidente no cruzamento. Já cheguei a ajudar um rapaz de bicicleta, que escapou por muito pouco de um choque com um carro. Ele desviou e foi parar no muro. Foi sorte.

Hoje, a rua está bem mais calma.

Olho para os dois lados.

É via da mão única, mas esqueceram de avisar isso aos caminhões de uma transportadora aqui do bairro. Todos eles usam a rua como se fosse de mão dupla. Na maioria das vezes estão bêbados. Então é melhor ficar atento e olhar sempre para os dois lados.

Atravesso.

E começo a filosofar...

Intromissão número dois do escritor intrometido: Perdoem-me, mas preciso interromper a narrativa para explicar o termo “filosofar” do ilustre personagem deste texto. Adoto “filosofar” aqui no sentido limitado de “pensar na vida”. Não esperem encontrar aqui um estudo aprofundado sobre arquétipos platônicos, o Criticismo de Kant, ou o super-homem Nietzscheniano. Joelson não é estudioso de filosofia européia. Nem eu sou. Então, se você, senhor leitor culto, esperou ler algo mais aprofundado sobre Filosofia pode parar de ler aqui e jogar este texto no lixo. Voltemos ao “filósofo” Joelson Carlos.

Filosofando sobre a vida e sobre tudo, exceto sobre minha casa e meu trabalho. Quero fugir!

Sobre o que eu filosofo?

Na minha caminhada diária entre o condomínio onde trabalho e a minha casa aparecem inúmeras cenas interessantes. Penso sobre elas. Mesmo no dia em que tais cenas são raras, sempre há algo para se meditar.

Exemplos?

Depois de sair do prédio, logo no segundo quarteirão, vejo dois grupos de rapazes conversando: o primeiro é formado por peões, trabalhadores das imediações que relaxam do cansativo dia de trabalho; o segundo grupo é formado por adolescentes que comentam jogos de futebol, garotas, e talvez fumem alguma coisa ilegal.

Desses dois grupos eu posso tirar centenas de filosofias.

Os rapazes do primeiro grupo são mais pensativos – talvez estejam filosofando sobre a vida como eu – e conversam sentados na rua. Do pouco que pude captar dos diálogos, noto que eles falavam de trabalho e dos patrões, o que é bem comum. Peão adora falar, bem ou mal, dos patrões.

Os do segundo grupo estavam bebendo cerveja e deveriam estar esperando eu e os rapazes do primeiro grupo sumirem para fumarem alguma droga e, assim, se sentirem como grandes transgressores das leis. O assunto era a festa de ontem à noite, as garotas que um ou outro pegou, e outros temas semelhantes.

O que posso filosofar sobre esses dois grupos?

Deixo essas cenas sumirem da minha mente, como se fossem cenas de uma novela de TV. Na verdade, são dois grupos pertencentes a uma mesma realidade: todos somos atores da grande novela da vida.

Geralmente as cenas do dia me oferecem elementos para dias e dias de filosofia. Contudo, cenas de trabalhadores (como eu) ou de jovens ociosos e alienados me deixam sem imaginação e sem vontade de pensar e meditar.

Passemos para outro exemplo.

Intromissão número três do escritor intrometido (e levemente pleonástico): O leitor e a leitora devem também ter notado que o Joelson parece muito mais culto do que um simples zelador de prédio. Ocorre que ele é uma exceção à regra geral dos zeladores de prédio. Ele é um zelador de prédio culto, embora não entenda nada de filosofia européia. Além disso, o texto é meu, o personagem foi criado pela minha mente insana e vocês não têm escolha senão aceita-lo do jeito que ele é. Vai aqui a recomendação: Se não gostam de personagens distantes da realidade, joguem este texto fora.

Outro exemplo que eu uso para filosofar?

Cães

Na caminhada eu encontro vários cães de rua. Alguns são cachorros que vivem nas ruas, outros são deixados na rua pelos donos para que satisfaçam suas necessidades fisiológicas e depois voltem para casa.

Fiquei amigo de um vira-lata preto que eu encontro no quinto quarteirão toda noite. Levo sempre um pedacinho de carne para ele. Embora ele tenha dono (é cachorro do guarda noturno de um outro prédio), esse bicho me adora.

Fico sempre pensando em como seria bom viver só, com apenas um cão, uma TV e uma boa garrafa de pinga. Já fiquei dias imaginando como seria ter vários cães, mas morando sozinho.

Um dia eu vi um garotinho de uns dez anos maltratando um gato.

Eu odeio gatos

Mas, maltratar bichos, mesmo gatos, é algo intolerável para mim, mesmo sendo praticado por uma criança.

Peguei o moleque pela orelha e o levei para a mãe.

Expliquei o caso. A mãe ficou brava comigo e não com o filho.

Então resolvi ser mais duro ainda

Vi o moleque de novo agredindo um gato e ele ria da minha cara. Claro, com o aval da mãe qualquer menino se sente como se fosse um Rambo.

Liguei para um amigo meu que era policial militar e odiava também garotos que maltratavam animais. Ele pegou o moleque em flagrante e o levou para a mãe. Eu fui junto. A mãe veio a favor do filho, e contra o policial e a mim. O meu amigo policial disse para a mãe que se ele pegasse o moleque novamente maltratando animais na vizinhança ele a prenderia e mandaria o filho para o Conselho Tutelar.

Não passei vontade. Olhei para o garoto e soltei uma gargalhada de dar gosto.

O moleque chorava copiosamente porque a mãe lhe aplicou uma surra homérica.

Pelo menos, nunca mais o vi maltratar bicho algum.

Interferência do escritor número quatro: Gostaram da atitude do meu Joelsinho? Ele é política e ecologicamente correto! Um cara atento aos ecossistemas e um ecologista nato. E isso mesmo sendo um reles zelador de prédio. Notem que ele teve o cuidado de não agredir o garotinho que maltratava bichos. Ele pegou o moleque pela orelha, mas isso foi apenas para levá-lo até a sua mãe. E a gargalhada foi só uma representação bem humorada da Justiça. Tenho orgulho da minha criação. Joelson Carlos, esse zelador de periferia, está se saindo um grande especulador e um grande amante da natureza. Estou feliz com esse texto.

Costumo filosofar sobre tudo o que vejo nas minhas caminhadas. Por exemplo, já notaram o estado em que estão as ruas e as calçadas na periferia?

Ruas cheias de buracos e mal asfaltadas.

Calçadas mal feitas e onde se tropeça a todo instante.

E quando chove? Tudo fica pior.

Sim, isso também é filosofar. Filosofar sobre a precariedade da vida na periferia de uma cidade.

Vejo aqui um muro com propaganda política.

O que se faz pela periferia?

Onde estão eles quando eu tropeço na calçada?

Intromissão do escritor número cinco: Perdoem-me, mas o “Joelsinho”, depois de ter sido ecologicamente correto sobre os animais, resolve ser politicamente incorreto. Por que um zelador vai querer se meter com a política local? Ele que cuide da sua vida medíocre de reles zelador de prédio e está bom demais. Odeio esses personagens que ficam se metendo nas histórias que nós escritores queremos escrever. Eu tenho um cargo de confiança e trabalho em uma repartição pública muito importante. Não posso me dar ao luxo de escrever textos com personagens rebeldes e que querem me prejudicar. Vou acabar com essa tendência comunista do Joelson agora mesmo!

Joelson: Vai nada

Escritor: Vou sim

Intromissão número seis: Vou construir o diálogo entre o Joelson e este escritor decente que vos escreve de maneira que vocês possam notar quem é quem. Não quero que vocês – e meus chefes – me confundam com o tal zelador.

Joelson: Quer dizer então que você me cria e quer mandar na minha vida?

Escritor: Criatura, todo escritor tem um pouco de Deus. Não reparou ainda? Somos seres sobrenaturais.

Joelson: Isso é injusto!

Escritor: E quem te disse que eu sou justo?

Joelson: Eu tenho, como personagem, a liberdade de ser quem eu quero ser.

Escritor: Não tem não! Você saiu da minha imaginação. Não é uma pessoa para ter direito e liberdade.

Joelson: E seu eu entrar em greve?

Escritor: Greve? Faz-me rir

Joelson: Ora, eu posso ficar onde estou e mudo.

Escritor: Eu coloco palavras em tua boca, Joelson. Posso te transformar em um zelador homossexual, por exemplo. Quer que eu te demonstre?

Joelson: Terei que ser um zelador exemplar, então?

Escritor: Não, terá que ser o zelador que eu criei e não o zelador que você quer ser.

Joelson: Não serei não.

Escritor: Vai me desafiar?

Joelson: Vou

Intromissão final do escritor: É raro acontecer, mas o leitor está diante de um motim de uma personagem contra um escritor, seu criador. Estou profundamente abalado com o que tive que fazer: Matei o Joelson, literariamente falando, é óbvio. Precisarei rever os meus conceitos e me preparar psicologicamente quando for escrever novamente. Nesta altura do desenrolar da trama do meu texto, só posso lhes informar que termino abruptamente esta narrativa por total falta de condições técnicas.

Despeço-me

Ponto Final.


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