terça-feira, 13 de julho de 2010

"O Velho e o Rapaz", Opus 08, by Fábio Zafiro Filho



-- Quem somos? Para onde vamos? Eis perguntas cujas respostas sempre são incansavelmente buscadas e nunca encontradas...

-- Cala essa boca, véio

O Bar estava cheio e o velho bêbado – que vinha toda segunda-feira falar sobre filosofia, religião e política - estava deixando todos doidos de ódio.

-- Calar? Quem sois, ó alma negra? Viveis ou apenas imitais os demais? Quem fala o que sabe expõe a sua mente aos outros e você, terá mente a expor?

-- A sua mente deve ser uma mistura de pinga com carne de gato, fedida e podre. Só sai bobagem. Anda, vê se acha o sanatório de onde você saiu e pára de nos atormentar.

-- Pinga? Minha mente tem pinga? Bom, pelo menos tem alguma coisa. Prefiro ter pinga a não ter nada...

-- Fica quieto! —o marinheiro já estava a ponto de levantar do banco e esmurrar o bêbado.

O bêbado riu, cambaleou até a porta e recomeçou seu discurso:

-- Bêbados! Eis a alma do homem: uma alma embriagada de prazeres idiotas, ódios infantis, interesses gananciosos. Homens são a escória do mundo...

-- Você é um deles, pingão...

-- E você também —respondeu o bêbado – mas não tem consciência da espécie que somos.

-- Há homens diferentes. Eu sou um homem são, viril e trabalhador. Você é um fraco, perdulário e perdido...

-- Homem é homem em todo o lugar e todos são fracos...

-- Você vai dizer que é a pinga que os faz fortes?—replicou um rapaz

-- Ela só atenua os sofrimentos... —diz o bêbado.

-- Os seus e os da humanidade toda? Você carrega a humanidade nos ombros?

-- Sou um membro dela... —diz o bêbado, que pára e olha atentamente para o rapaz...

-- E, por isso, pode achar que a pinga consegue atenuar os sentimentos de todos? – continua o rapaz...

-- Pelo menos os meus...

-- É. Vejo que você se dá muita importância, a ponto de poder julgar toda uma espécie. .Quem é você?—prossegue o infatigável rapaz...

-- Bravo, uma briga de intelectuais: um cheirando a pinga e outro cheirando a leite... —grita o marinheiro e o bar todo cai na risada.

O rapaz e o bêbado nem ouviram a bobagem dita pelo marinheiro...

-- Sou um homem amargurado - diz o bêbado.

-- E culpa a humanidade pelos seus erros? Ou pelos erros dos outros? – replica o rapaz.

-- Não culpo ninguém. Só digo que os homens são fracos. São uma escória...

-- Com que legitimidade? Quem é você para julgar toda uma espécie animal somente pelos seus erros e dos que lhe são próximos?

-- Com a legiti... —o bêbado gagueja – titimidade de ser um homem e ter vivido muito...

-- A experiência traz a sabedoria? Mas, qual experiência? A sua? Só a sua? Como pode saber se os seus erros e os seus acertos representam realmente uma síntese dos erros e acertos da humanidade?

-- “Sou humano e nada do que é humano me é estranho” – disse o bêbado, como se falasse uma oração...

-- Grande pensamento, mas não é a resposta correta á minha pergunta. O fato de não estranhar o comportamento alheio não quer dizer que você possa conhecer profundamente toda uma espécie a ponto de julgá-la... — o rapaz para e sugere – por que não procura reduzir o seu julgamento aos homens que você conhece?

-- Todos os homens que conheço são escória... - diz o bêbado, cuspindo.

O rapaz, calmo e paciente, senta e cruza as pernas, bebe um gole do seu suco e prossegue:

-- Seu pai e avô são escória?

O bêbado deu uma risada forçada e diz: “Meu pai é toda a escória e os excrementos do mundo”.

-- Por quê? – questiona o rapaz, fitando os olhos do bêbado.

-- Ele batia na minha mãe e nos meus irmãos. —responde o bêbado.

-- E ele representa toda a humanidade para você? Você acha que todos os pais são iguais? – pondera o rapaz.

-- Não, mas o meu era escória...

-- Não, meu caro, o seu mundo é que é escória... —disse o rapaz, pausadamente.

-- Que mundo? – perguntou o bêbado.

-- Você criou um mundo particular, todo seu, e a ele você reduziu toda a humanidade. Nesse seu mundo estão todos aqueles que te ferraram, que te machucaram, que não te quiseram e também os que te amaram e amam. Neste seu mundo, você é o único juiz, pois ninguém mais sabe sobre os seus sentimentos e sobre a sua vida, seus erros, seus vícios, suas virtudes e sobre o seu passado. Você é o Juiz Supremo. Pode decidir que a humanidade é podre, ou perdoá-la. —conclui o rapaz.

-- Belas palavras, mas não é a verdade, a verdade é que você faz parte de uma espécie falida.

-- Não, a nossa espécie não é falida. É a sua mente que a tornou insípida, negra, salgada, amarga. Aonde os outros sentem o gosto doce, você encontra o fel. A sua humanidade esta falida, a humanidade que está dentro da sua mente.

-- Você é um cretino.

-- No seu mundo, todos os homens que lhe digam que a humanidade é boa ou que a vida é bela não passarão de cretinos. Ora, você já decidiu que a humanidade deve ser condenada, sem recursos, sem piedade, sem misericórdia. Foi você quem acabou com o mundo e não os homens.

O bêbado sentou no chão e disse:

-- Os homens me ferraram e a vida os ferrará. Os homens são o fim.

-- Não seja tolo! Você pode combater tudo. Basta ter consciência disso. Não seja mais um pobre diabo.

-- Não sou um pobre diabo. A humanidade que é a praga, a erva daninha...

-- Meu caro, -- diz, calmamente o rapaz, pondo a mão no ombro do bêbado – e o que você é?

-- Já não sou mais ninguém.

O bêbado acaba dormindo e o rapaz sai do bar depois de tomar o seu suco. Deixou algum dinheiro para que os marinheiros levassem o bêbado para sua casa.

-- Todo esse dinheiro só para levar um idiota desses para casa. Devia é largá-lo no esgoto — resmunga um marinheiro contando o dinheiro.

O dono do bar ajuda a tirar o bêbado do bar e, ao fechar as portas, diz:

-- Levem esse pobre diabo com cuidado.

-- Por quê? E ele lá merece? – responde o marinheiro

-- Merece sim. Ele é o pai daquele rapaz. Vive perambulando pelas ruas. Era um bom homem e bom funcionário público, mas se enterrou no vicio. O filho tem pena dele, mas, o máximo que ele consegue é discutir com o pai bêbado e dar dinheiro para levarem-no para casa.

-- Ele é um bom rapaz —reconhece o marinheiro – mas, por que ajudar um pai que quer ver o mundo pegando fogo?

-- Porque o pai, todo dia, vai ao cemitério. E quando se depara com o túmulo da mulher, volta para casa chorando e diz ao filho: “O meu mundo era ela, hoje o meu mundo é o inferno” e sai para os bares, pregando e discutindo, atacando a humanidade, Deus e os políticos Isso acontece todo santo dia e cada dia da semana ele discursa em um bar diferente. Amanhã será no Bar do Neco, ali na esquina...

-- Ao chegarmos na casa do rapaz, devolverei o dinheiro – disse o marinheiro, com lágrimas nos olhos – ele precisará mais do que eu.

-- Você é um bom homem e agora pegará seu barco e irá embora, mas, a vida para o rapaz será sempre esta. Consegue imaginar?

As lágrimas foram sufocando o pobre marujo.

E foram andando, carregando aquele velho sujo e fétido pelas ruas do porto naquela madrugada de maio. O marujo ia chorando e o dono do bar contando outras histórias daquela família. Os demais seguiam em silêncio.



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