quarta-feira, 10 de novembro de 2010

"Funcionário Público", Opus 11, by Fábio Zafiro Filho


Observando o horizonte! Era isso mesmo que Joaquim queria fazer naquele exato momento: ler um bom livro e, ao deixar a leitura por um tempo, observar o horizonte ensolarado e cheio de árvores de um local qualquer no interior do país.

Imaginava o sol quente e ele na sombra de uma varanda sentado em sua cadeira, lendo um livro qualquer e observando a natureza.

Joaquim estava lá e observava tudo: um boi pastando aqui, uma criança correndo lá. Tudo verde, tudo limpo, tudo sereno. O sol com um leve vento frio. “É, meus filhos, o inverno está chegando” diz um senhor de idade aos netos na rua em frente da varanda. O cachorro late e vem deitar ao seu lado, aguardando a comida e um gesto de amizade. Ele abre o livro e continua lendo, era bom demais. É a vida.

Suas alucinações se desfizeram em fumaça. Uma pessoa ao seu lado espirra forte, lhe jogando alguns respingos de gripe ou resfriado. Tinha se realizado o choque da realidade através de um simples espirro. E a realidade não o satisfazia.

Aquela repartição pública cheia de pobres diabos. Pareciam todos saídos da mesma máquina industrial, da mesma linha de montagem. Eram autômatos que mexiam com papéis, canetas, carimbos, e todos aqueles aparelhos de uso cotidiano. O local tinha cheiro de papel velho, tinta, desodorante de segunda linha e perfume de oitava categoria. Aquele odor nauseabundo e sufocante o atordoava: era uma espécie de ópio..

Mas, aquela pessoa que havia espirrado bem ao seu lado estava lhes dirigindo palavras com muitos gestos nervosos. Parecia com raiva. Ele via a mulher – sim, era uma mulher – mas, parecia que ela estava atrás de uma tela de TV ou de uma parede de vidro. Ele fez um grande esforço e ouviu as lamúrias:

-- Eu venho aqui todo o dia durante um mês e vocês nem querem me atender – dizia ela, com ódio no olhar – Isso é uma palhaçada. E os meus direitos? Por que é que os meus papéis ainda não foram resolvidos?

-- Minha senhora, nós temos que aguardar a assinatura do Diretor, que está de férias. Já lhe disso isso dúzias de vezes e a senhora insiste em aparecer – intercedeu um colega de Joaquim.

Papéis? Por que o mundo atualmente parece reduzido a meros pedaços de papel com carimbos e palavras? Ah, mas agora Joaquim sabia que o mundo iria mudar, pois não serão mais os papéis que vão imperar na face da Terra e sim os números e os programas de computador. E, enfim, os carimbos e a papelada irão para o lixo.

-- Que vagabundagem! O Diretor está de férias – dizia a mulher aos berros – e não tem nenhum idiota que possa assinar estes papéis? Quem ele é? O presidente?

-- O Diretor substituto não quer assinar porque não sabe de tudo o que ocorreu no seu procedimento. Ele prefere aguardar o outro, que sabe de tudo e pode assinar – respondeu o rapaz com indolente calma.

-- Isso aqui é uma porcaria. Todos nós pagamos os salários de vocês e fazemos isso para que uns cretinos saiam de férias e outros imbecis nos atendam como se fossemos mendigos atrás de esmolas – gritava ela – Safados!

-- Minha senhora, eu entendo sua revolta, mas eu sou só um mero balconista, café pequeno. A senhora brigar comigo não vai adiantar nada, porque eu não posso resolver coisa alguma.

-- E quem pode? – perguntou a senhora nervosa.

A revolta da mulher tinha chegado aos ouvidos de Joaquim e ele percebeu que alguém teria que fazer algo para tirar aquela senhora dali. E lá foi ele se meter...

-- Eu posso – falou Joaquim, com calma.

-- O que você é? – perguntou a mulher

-- Sou o chefe dos balconistas – Joaquim era apenas um escrevente, mas vinha em auxílio do amigo e de toda a repartição – qual o problema?

-- São os meus papéis.

-- Já lhe deram a informação

-- Mas, isso tá errado, e os meus direitos?

-- Minha senhora, se fossemos falar em direitos, estaríamos empatados. Já tem alguns anos que não tenho aumento. Tenho direito, é verdade, mas e daí? Eles querem pagar?

-- Eu não estou nem ai para os seus problemas. Eu quero os meus papéis!

-- A senhora acha que basta eu estalar os dedos e “PLIM”, eis aqui os seus papéis? Tudo no Estado – soletrou esta palavra com leve toque pejorativo – necessita de papéis, carimbos e assinaturas. Por mim, lhe daria o que pede agora e estaria terminado, mas os papéis dependem de procedimentos, e os procedimentos dependem de carimbos e assinaturas. Se eu pudesse acabava com tudo isso, mas não sou um revolucionário e tampouco Deus.

-- É apenas um pau mandado

-- Não, sou apenas um burro de carga e nada mais. Faço o que me mandam. Não tenho o direito de reclamar, ao contrário da senhora. E tenho que levar as broncas e xingamentos aqui no balcão, enquanto os chefes tiram férias, folgam, saem para reuniões, viajam para certos congressos e várias outras atividades interessantes.

-- Você escolheu a profissão.

-- Não, eu passei em um concurso, pensando em estabilidade e em ter uma boa ocupação. Não queria ser um burro de carga, sem direito a reclamar.

-- Se não gosta, por que não pede demissão?

-- Tenho dez anos de repartição e trinta e cinco de vida. A senhora conhece algum balconista com trinta e cinco anos de idade?

-- Ta, entendi, o desemprego. É por isso que não sai. Então, você está frito.

-- É o que eu estava falando...

-- E o que eu tenho a ver com isso tudo?

-- A senhora precisa gritar e espernear? Será que não poderia ser gentil com quem não tem culpa nenhuma de estar trabalhando num cubículo destes?

-- Meu querido, eu preciso dos papéis. Posso até ter me exaltado, mas eu ainda continuo precisando deles.

-- Eu sei, mas como vou poder lhe atender? Não depende só de mim. Se dependesse, eu já teria lhe dado quando a senhora tinha iniciado a gritaria. Não gosto de procedimentos tempestuosos. Agora, a informação que posso lhe dar é a seguinte: O diretor que irá assinar a papelada volta na segunda-feira. Ele assinará o expediente por volta das duas. A senhora pode vir na terça e, provavelmente encontrará seus papéis aqui.

-- E se ele não assinar ou resolver pegar um gripe e ficar dez dias de licença?

-- Se eu pudesse prever o futuro, certamente não trabalharia aqui. Não sei o que vai acontecer, mas posso lhe dizer que ele precisa vir na segunda-feira para receber o pagamento e terá que justificar o pagamento com um mínimo de serviço. Então, eu acho que ele irá assinar os seus papéis.

-- Agora entendi. O pagamento – e a mulher começa a rir.

-- Se tivesse falado com mais amabilidade e com sorrisos, talvez eu lhe dissesse isso de pronto, mas a sua ira só prolongou as coisas.

-- É evidente que não tenho garantias, não é?

-- Não posso garantir nada pelos outros, só aquilo que faço ou tenho contato é que garanto.

-- Obrigada. Você me deixou mais segura, obrigada. Qual o seu nome?

-- Joaquim

-- Nome de santo. Talvez seja por isso que você seja tão tranqüilo e transmita tanta tranqüilidade.

-- Talvez.

-- Tenha um bom dia de trabalho – e, depois, sorrindo – de preferência sem pessoas histéricas e com muitas pessoas sorridentes.

-- É difícil. As pessoas vêm descarregar a sua ira em cima de nós e isso ocorre sempre. Pessoas calmas são raras. Mas, obrigado assim mesmo.

Joaquim retornou à sua paz interior, com seus horizontes infindáveis e suas leituras intermináveis. Imerso em sua vida particular e estritamente pessoal, tudo lhe parecia mais fácil. Tinha temor de voltar à realidade e de voltar ao mundo real, que lhe parecia tão artificial e irreal.

A mulher não voltou na terça-feira, como Joaquim recomendara, mas sim na segunda-feira, e acabou por fazer outro tumulto. Nesse dia Joaquim tinha ido levar alguns malotes para outra repartição. Ficou sabendo, depois, que a moça tinha sido levada pelos seguranças, pois a mesma tinha ameaçado um dos diretores com um grampeador.

A repartição toda contava o caso misturando horror e humor. Uma cena pesada e de humor negro. Ela foi levada para casa e seu advogado (calmo e sereno) solucionou o problema, embora tenha ameaçado – também com muita calma – representar o diretor perante a autoridade competente em virtude da negligência. O processo da moça, curiosamente, tramitou rapidamente e tudo ficou resolvido.

Joaquim reencontrou a moça dias depois em um boteco, depois do expediente. Ela estava comprando um cigarro e logo o reconheceu:

-- Fiz outro ataque lá no seu serviço.

-- Fiquei sabendo.

-- Consegui os papéis. Um advogado amigo meu disse que isso precisava de certa persuasão.

-- Ele foi bem persuasivo com o diretor.

Ambos riram.

-- Espero que possamos ser amigos – disse ela

-- Claro.

Depois se despediram e Joaquim nunca mais viu a moça. Ele soube, pela imprensa, que ela tinha sido presa por matar um guarda de trânsito. O policial a havia multado por ultrapassar um sinal vermelho e ela afirmava que estava indo salvar um amigo que tentava o suicídio.

De um suicídio inexistente ela acabou cometendo um homicídio, atropelando o guarda. Moça exaltada essa, não?

Mas, Joaquim não ligou muito quando leu a noticia no jornal. Era mais uma pessoa atrás da parede de vidro que sumia da sua vida, tal como havia entrado: como um cometa.

E, então, Joaquim, voltou para seu mundo interno e infinito, e passou a admirar a beleza de um cometa. Um cometa que estava no céu da sua consciência.

E tudo continuou como antes, como sempre. E tudo assim será.

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