quarta-feira, 10 de novembro de 2010

"O Último Retrato", Opus 12, by Fábio Zafiro Filho



Sérgio era uma pessoa diferente. Não era uma pessoa normal que trabalha, come, sai para se divertir, anda com mulheres, visita amigos, dança, e faz as milhares de coisas normais diárias do cidadão comum moderno.

Sérgio lia muito, gostava de música e, principalmente, tinha o hábito de observar a vida, de qualquer um. Era um homem que observava os hábitos dos outros, sem fazer avaliações ou filosofar a respeito do que via e sentia. Bastava ver!

Essa esquisitice de Sérgio começou logo na infância, quando observava os amigos e amigas de escola conversando e brincando no pátio do colégio. Observava também os professores, os inspetores de aluno, faxineiros e, até mesmo, o Diretor da escola. Todos eram objetos da observação de Sérgio.

Alguns o achavam maluco, outros pensavam que ele era tímido e alguns poucos acreditavam que Sérgio era um garoto normal. Os professores sempre se questionavam se seus ensinamentos estavam conseguindo entrar naquela cabeça aparentemente doentia, mas nunca tinham certeza.

Sérgio era um dos melhores alunos da classe, mas, se prestava a atenção em dez por cento da aula era muito. Ficava divagando por minutos intermináveis observando detalhes da roupa de uma menina ou no giz que o professor estava usando. Nunca se sabia ao certo em que ele pensava.

Um dia, o Diretor chamou a mãe de Sérgio para uma conversa (o pai de Sérgio havia falecido quando ele tinha quatro anos) com um psicólogo e com uma Assistente Social. Os especialistas concluíram que Sérgio era um menino com uma inteligência muito elevada, com tendências artísticas e que teria muitos problemas para se adaptar com os demais garotos. Segundo os doutores, para Sérgio, toda a escola era fútil e sem qualquer sentido, um local de loucos e de idiotas Afirmaram ainda que o caso dele era delicado e que auxiliariam a mãe e os professores, acompanhando o desenvolvimento do menino.

Eles ajudaram, mas a mãe de Sérgio acabou por conseguir um bom emprego numa cidade próxima e ambos tiveram que mudar para lá. A partir de então, o menino acabou por ficar em casa, só e sem ajuda profissional. A escola da nova cidade, “Escola Municipal 22 de abril”, não aceitou o menino, pois o Diretor da outra escola mandou uma carta informando aos professores deste novo colégio que Sérgio era um aluno que precisava de cuidados especiais, por ter inteligência superior.

O Diretor da “Escola 22 de abril” achou melhor deixar o menino em casa do que aceitar um aluno diferente em sua escola. Preferiu deixar o problema em casa a enfrentá-lo.

O menino acabou por se tornar uma pessoa só, morando com a mãe, que o tratava com muito zelo, embora ainda acreditasse que Sérgio era um retardado ou um louco.

Com o tempo, o menino virou rapaz, e depois, virou Homem.

Sérgio, com seus 32 anos, ainda vive com a mãe, que hoje está com 60 anos, naquela mesma cidade para onde se mudaram. Sérgio não trabalha. Ele apenas lê, ouve música, desenha, pinta, e OBSERVA.

Sérgio passou a fazer da observação uma atividade diária, um prazer sem limites e insuperável.

Logo pela manhã, depois do café, Sérgio sai de casa e começa a caminhar, sem destino. O itinerário era sempre incerto. Várias vezes ele saia e dava voltas pelo quarteirão por várias horas até voltar para casa. Nunca se sabia para onde ele iria.

Andava, andava e andava. Parava aqui, cumprimentava um e outro (Sérgio era comunicativo, mas somente quando lhe parecia conveniente ou quando lhe era prazeroso), comprava um doce, e prosseguia.

Daí ocorre a chance para o primeiro retrato do dia. Sérgio pára e olha.

Era um casal de idosos andando, bem abraçados, como se tivessem acabado de se casar. Ela dava um beijo na testa dele e ele sorria. Ele deveria ter 68 anos e ela uns 62 (Sérgio era preciso em adivinhar idades).

Sérgio começa a reparar nos detalhes. Ele andava com dificuldade, o que poderia ser conseqüência de problemas cardíacos ou de coluna; quanto a ela, deveria estar com uma saúde melhor, pois amparava os passos dele.

A roupa dele devia ser um terno dos anos 70, bem amarrotado, cinza claro. O velhinho usava ainda camisa sem gravata, lenço branco, sapatos pretos, e estava bem perfumado. Em um dos bolsos do paletó havia uma carteira e no bolso esquerdo da calça havia um molho de chaves. Provavelmente iam à Missa das nove horas, na Igreja Matriz.

Já a velhinha ia com uma saia bem longa preta e com uma blusa de lã verde escura. Usava sapatos pretos, um colar de pérolas, uma bolsa de couro e carregava uma Bíblia. Também estava muito perfumada.

Sérgio via que andavam bem devagar como se estivessem apreciando cada passo. Pararam um momento para cumprimentar um casal que passava e continuaram a caminhar. Nesse momento, tendo ao fundo uma árvore centenária e ao lado direito um carrinho de pipoca, Sérgio registrou em sua prodigiosa memória mais este retrato.

Era esse o divertimento de Sérgio: visualizar cenas belas e marca-las na mente, como em um álbum de retratos. Sua mente prodigiosa dava a ele o poder de gravar na memória momentos e cenas cotidianas que para qualquer um seriam inúteis, mas que, para ele, eram o motivo para poder continuar vivendo.

Sérgio era um artista, como previram aqueles especialistas de outrora, mas era um artista que não precisava de instrumentos, pincéis, máquinas, barro, tintas, partituras, palcos, e outros acessórios. Ele bastava a si próprio; era, ao mesmo tempo, o artista e o único espectador de sua obra, e o melhor, o único a julgá-la.

Para muitos essa arte pode soar como algo anormal e surreal, mas a verdade é que Sérgio se sentia muito feliz consigo próprio. Era uma pessoa realizada. Não precisava de mais nada e de mais ninguém, bastava ver e sentir e mais nada.

O arquivo de retratos de Sérgio (se é que assim podemos dizer) é imenso. Tem ele retratos de paisagens, pássaros, crianças, velhos, enfermos, casais, pessoas da família, pessoas ilustres da cidade, cenas de crime, cenas de briga, cenas de amor, e, até cenas de sexualidade.

Quando queria puxar uma dessas cenas ou momentos na memória era só pensar e em segundos estava lá o retrato com todos os detalhes, bem colorido, e perfeito, como uma foto, um filme ou um quadro.

Era uma arte de um homem só. Um só artista, um só espectador, e um só crítico. Era uma arte perfeita, mas que era impossível de ser passada adiante.

Depois dos velhinhos, Sérgio seguiu em frente.

Estava contente consigo próprio, pois tinha conseguido um dos melhores retratos do mês. Começou a caminhar devagar, de volta para casa, como se tivesse acabado de concluir uma obra literária ou pintado um belo quadro.

Resolveu andar até a Igreja. Viu o Padre regando o jardim como sempre fazia logo cedo e o cumprimentou. O sacerdote era o único naquela cidade que parecia entender os pensamentos de Sérgio. O olhar do Padre traduzia compreensão, algo que Sérgio nunca chegou a saber bem o que significava.

Depois de passar pela Igreja e pela Prefeitura, Sérgio seguiu por uma ladeira, que levava até o clube. No meio da ladeira, Sérgio nota uma cena interessante: uma criança brincando com a mãe.


Sérgio se aproxima mais, observa mais detidamente e se assusta. Era a mulher mais bonita que já vira na vida. A criança brincava alegremente enquanto a mãe lhe fazia cócegas e caretas, com a sutileza de uma jovem camponesa.

A beldade tinha cabelos loiros com mechas caindo pelos ombros. O penteado estava desfeito, devido ao vento e aos puxões e empurrões da criança brincalhona. Usava um vestido florido com rosas vermelhas e fundo branco, e sapatos brancos.

Sérgio ficara parado observando, o que chamou a atenção da criança que falou:

-- Quer brincar também?

A mãe falou que a menina não devia ficar abordando estranhos na rua. As pessoas tinham coisas sérias a fazer e não poderiam ficar brincando com ela.

Sérgio não falou nada. Começou a sentir um calor, uma sensação de prazer misturado com inquietação. Não sabia bem o que era. Continuou observando a moça detidamente. Seus traços eram suaves, leves como uma pluma e seus olhos pareciam duas pedras preciosas raras e de elevado valor. Era uma mistura de um ser angelical com uma camponesa antiga.

O coração de Sérgio bateu forte. Emoções começaram a ferver seu sangue e a transformar seu cérebro num tufão de pensamentos. Seus sentidos pareciam estar entrando em colapso total, sentia impulsos sexuais e amorosos com tal intensidade que não sabia mais o que fazer.

Numa resolução bem íntima e intensa Sérgio acabou por retratar na memória a cena da mãe brincando com a filha. Foi algo extremamente difícil naquele momento. Sérgio parecia estar no meio de uma guerra de nervos, com sentimentos, impulsos, instintos e pensamentos se amontoando no seu cérebro. Estava prestes a explodir ou a enlouquecer completamente.


Quando finalmente conseguiu memorizar o retrato, Sérgio marcou bem o momento no cérebro como a conclusão de uma obra suprema e, depois, caiu no chão, desfalecido.

Tinham sido suas últimas emoções. Havia falecido de um ataque cardíaco fulminante.

Mas, Sérgio havia conseguido o que todo artista sempre almeja: a obra prima, a obra suprema, a obra máxima. Tinha conseguido marcar na memória, por segundos apenas, o mais belo de todos os retratos que havia conseguido guardar na vida.

Era o mais belo porque vinha carregado de um amor súbito e ardente. Amor este que provocou emoções extremas no cérebro puro e racional de Sérgio, que, apesar de ser extremamente inteligente, era um iniciante em matéria de sentimentos.

Sérgio acabou por levar sua obra máxima e seus sentimentos elevados e ardentes juntamente com sua alma luminosa, inteligente e amorosa. Ninguém saberá que houve neste planeta artista tão apaixonado.

Com o seu súbito ataque, Sérgio acabou sendo um dos protagonistas de uma bela cena para ser retratada: a criança, pura e casta, sem entender o que acontecera com aquele jovem moço, estava acariciando suavemente a testa de Sérgio, em uma ilusão de que ele poderia estar dormindo.

Este maravilhoso retrato Sérgio não pôde registrar na sua memória, e, infelizmente, apesar da cena ter sido fotografada, a foto não foi utilizada no dia seguinte, na reportagem de capa do jornaleco local, cuja manchete era: MORRE O LOUCO DA RUA COSME.




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