quarta-feira, 20 de agosto de 2008

"A Filosofia de um trabalhador comum" Opus 01 - by Fabio Zafiro Filho




Acordou.

Era a hora correta para despertar para o dia. Mas, nem dia, nem nada, o que Ele queria mesmo era a volta ao sono, àquele sono recheado de sonhos...

Sentiu-se pesado e sem forças. Nada era pior do que um novo dia, um novo acordar, uma nova jornada. Cada dia parece uma nova vida, uma nova caminhada para a felicidade ou para o suicídio.

Olha para o relógio: são seis e meia da manhã.

Nada lhe parecia mais desagradável do que um relógio. O relógio deve ter sido o deus grego do trabalho. Deve ter existido um Templo do Relógio, em Atenas, no alto da Acrópole, com sacerdotes fiscalizando se os pobres gregos estavam trabalhando direito.

Ora, qual a razão da existência do relógio na vida de uma pessoa normal? Seria um mecanismo inventado somente para deixar os homens loucos? Um instrumento de tortura?

E esses modelos digitais? São as formas mais modernas e recentes de tortura psicológica. A pessoa fica atenta para saber se o número vai mudar de 29 para 30 e se esquece que nesse mesmo minuto poderia ter tido uma excelente idéia, que poderia mudar a sua vida inteira.

Olhou para o teto.

Levantou-se. Era duro e trabalhoso levantar àquela hora da manhã. Tinha que fazer um exercício de concentração e meditar consigo mesmo:

“O dia hoje vai ser dos mais agradáveis”.

Era uma técnica que leu em um livro de auto-ajuda, desses que são vendidos em banca de jornal, e que continha mais de cem frases idiotas semelhantes para mais de oitenta circunstâncias diferentes, até mesmo para a hora do sexo.

A frase que Ele utilizava era a única que achava razoável, pois era a mais fácil de ser dita e de ser pensada e dispensava qualquer tipo de erudição, o que é difícil de ter quando se acorda.

- Acordou, meu amor?

Era uma das perguntas que mais temia, por dois motivos principais:

Primeiro: Odiava quando sua mulher vinha lhe acordar ou quando vinha lhe perguntar se tinha dormido bem ou algo parecido. Não se sentia bem com tais questionamentos mundanos e sem qualquer apelo romântico.

Segundo: Quando sua mulher falava “amor“ era sinal que vinha bomba junto: algum problema como contas para pagar, pedido de dinheiro para comprar uma meia que estava em oferta, comunicado formal sobre o desempenho das crianças na escola, ou outras encrencas semelhantes.

Mas, sua mulher, apesar de já estar se transformando em uma dona-de-casa padrão, não deixava de dar ainda sua dose completa de amor e sexo, o que fazia com que ele esquecesse qualquer problema conjugal ou familiar, pelo menos até àquela hora da manhã.

- Acordei – disse Ele - temos alguma novidade para enfrentarmos o dia já com o pé esquerdo?

- Não seja tão pessimista. – disse ela se aproximando da cama – só temos que comprar um ferro de passar novo, pois o que temos pifou.

- Ótimo. Quanto?

- Posso fazer crediário? Só serão seis parcelinhas...

- Tá, mas vê se compra somente o ferro e procure não comprar aquele modelo último tipo, que é pelo menos quinze vezes mais caro que o modelo normal e em oferta.

- Ah, você sabe muito bem que eu sou controlada em matéria de compras. Por que esta desconfiança injusta agora?

- Puro mau humor...

- Tá bom – disse ela sorrindo – mas vê se melhora logo esse humor porque aquele seu amigo disse que vinha falar com você as oito horas sobre algum problema familiar.

- Esqueceu de pagar a pensão ou foi gritar com a mulher no emprego dela?

- Não sei, você sabe que eu acho esse cara um...

-...Cretino, mau caráter, mulherengo, injusto, covarde, irresponsável, cruel, bastardo, ignorante. Será que eu esqueci algum adjetivo?

- Você está sendo muito exagerado. Eu só acho ele mau caráter, o resto é você que está inventando....

- Eu até acreditaria nesse seu discurso de boa samaritana se não tivesse presenciado umas treze discussões entre vocês dois.

Ela resolveu ir para a cozinha e já ia saindo do quarto, quando voltou e disse:

- Eu sei que você sente ciúme dele comigo, mas eu juro que não gosto de carecas e gordos.

- Eu sei. Deve ser por isso que você briga tanto com ele.

Ela olhou-o com um leve toque de carinho e disse:

- Você sabe que eu só não consigo brigar com você, né?

Ele não estava de bom humor para romances de café-da-manhã. Queria assistir televisão, tomar um bom banho e ler uma revista.

Respondeu:

- Então eu posso tomar meu banho de meia hora sossegado e, depois, deixar a toalha enxarcada em cima da cama, né?

Ela dá um leve suspiro e diz:

- Meu amor por você ainda agüenta isso, mas levante esse astral. Pense em alguma piada, faça cócegas, sei lá.Tira essa cara de coveiro com insônia.

Ela saiu.

Paz novamente.

Ele seguiu para o banho matutino. Era o mesmo banho de sempre: aquela água morna caindo do chuveiro, aquele sabonete já quase na última lasca, aquele vapor sufocante, e o meditar tradicional.

Depois disso, foi para a cozinha.

- Quando mesmo que você disse que aquela coisa em forma de gente vem?

- As oito...

- Ele sabe que eu saio as oito e meia e vem me encher logo antes de sair.

- Ele só quer desabafar. É um problema sério essas relações conjugais. Brigas, desentendimentos, pensões, eu não agüentaria...

- Por que? Parece tão divertido, Vamos tentar?

- Seu humor tá dando uma ligeira melhorada, que vai comer?

- Você deveria ter feito essa pergunta ontem antes de irmos dormir.

Ela corou imediatamente.

- Seu humor já está normal. Quanto ao resto você sabe porque não tivemos uma boa noite ontem. Eu estava...

- Com dor de cabeça...

- Você fala como se eu vivesse dando desculpas para não...

- Desculpe. Nessa parte nunca tive e não tenho nada a reclamar. Estava só brincando. Você quer ou não que eu melhore o humor?

- Tá bom, mas se você não parar de falar bobagens como essa, terá que ir dormir no sofá e sua mão terá que fazer aquele trabalhinho sujo durante umas semanas, aquele mesmo que você fazia no banheiro quando tinha uns onze ou doze anos de idade, lembra-se?

Ela disse isso abraçando-o e dando-lhe um leve beijo no rosto.

- Mas isso é uma coisa tão ruim assim.

Ela ri

- Não duvido. Mas, ainda acho que é melhor comigo, né?

- Sem sombra de dúvida, mas isso não transforma a outra modalidade em uma coisa desagradável, tanto que eu a utilizava aos doze anos.

- Chega. Vamos falar sobre isso no quarto, não aqui.

- Esse assunto não te interessa?

Ela dá uma risada e um leve tom sensual surge em seu semblante.

- Me interessa por demais. Por isso é que eu quero que a gente converse no quarto e à noite, tá? A gente alterna a parte teórica com a parte prática e depois fazemos alguns comentários sobre o tema.

- Ta, então tá marcado Hoje.

- Talvez...

Ela riu, deu um longo beijo na testa dele e foi acordar os filhos.

Ele resolveu ir para o quarto ler algumas notícias. Adorava os filhos, mas não pela manhã. Quando eles acordavam pareciam lesmas pegajosas e em nada lembravam aquelas belas criaturas das fotos.

Enquanto a mãe dispensava os filhos e encaminhava-os para a condução que os levava diariamente para a escola, Ele se vestia, se barbeava, lia a revista, e se preparava para a jornada de trabalho diário, ou seja, para outro dia na vida cotidiana do escravo remunerado das grandes cidades.

Depois que se aprontou, foi à sala e ficou aguardando o Amigo.

Toca a campainha. Ele abre a porta.

O Amigo entra aos prantos.

- Estou perdido... – diz o Amigo, chorando.

- Matou alguém?

- Não. Ela pediu o Divórcio....

Ele realmente não compreendeu nada. A alma humana e, principalmente, a alma dos amigos, é sempre difícil de ser entendida. Sempre damos conselhos que são esquecidos, contrariados ou seguidos, mas sempre o culpado de tudo é aquele que tenta ajudar.

- O que eu faço agora?

Ele via duas alternativas: procurar um sacerdote ou se matar, mas só falou:

- Vá falar com ela...

O Amigo, como era de se esperar, nem ouviu.

- Será que ela tem outro? Será...

Ele sabia que era duro, mas teria de falar que quando as pessoas se separam, a tendência é, naturalmente, partirem para outro relacionamento e daí para o Divórcio. A pensão, as brigas sobre as visitas ao filho e sobre o tratamento que este recebe aqui ou acolá, constituem somente a primeira fase do Vestibular para a faculdade de Divorciado.

- Você já...? – balbuciou Ele

Ele não sabia o que dizer. Somente fazia meias perguntas, que eram respondidas com meias respostas. Ambos estavam na mesma sala, mas um estava na Terra e outro, aparentemente, estava em Orion.

- E ela?

- Ela vai tentar...

Era como se Ele tivesse conversando com um espectro, um alienado, ou com uma personagem de desenho animado. A conversa entre ambos mais parecia um conjunto de ruídos do que um diálogo inteligível.

- Ela está muito...

- É... - respondia Ele.

- Você sabe. Ela era muito...assim, sabe?

- Sei...

E o papo se arrastava por minutos torturantes até que o Amigo disse:

- Vou encher a cara...

- Não vomite... - respondeu Ele.

E saiu, sem destino e com um futuro incerto e não sabido.

Ele ficou parado, sentado na poltrona da sala, quando sua mulher chega e lhe pergunta:

- E ai? Ele conseguiu falar ou somente imitou uma criança retardada?

- Você é má. Não viu o sofrimento nos olhos dele. O homem parecia um caco...

- Sofrimento? Será que ele conseguia raciocinar o suficiente para poder sofrer? Achei que ele ia ter um ataque de catalepsia a qualquer momento.

- Sem comentários.

- Você tem muita paciência! – disse ela com um ar de pena – cuida dele como se fosse seu cachorrinho de estimação.
- É preciso ter muita paciência para agüentar todas essas suas alfinetadas no coitado. Tenha um pouco de compaixão, ou então – parou e sorriu - um pouco de senso de humor.

Ambos começaram a rir.

- O seu Amigo estava realmente uma figura hedionda

- Eu sei, mas se eu não o defender, quem o fará?

- O advogado dele... — disse ela olhando-o calmamente - E aí? Você vai aqui ficar em casa para sempre? Se você pretende ficar em casa relaxando, quem vai se divorciar de você sou eu...

Era sempre assim, quando aquele amigo chegava ele esquecia da vida. Ficava pensando: “que grande merda é a vida............dos outros“. Ficava lembrando de todos seus amigos e colegas com problemas e acabava esquecendo da vida.

- Tem razão. O sacrifício laboral diário me espera. Adeus! – levantou-se, beijou a mulher (aquele beijo normal de operário) e saiu para o dia no escritório.

Saiu para a Rua.

Sim, a Rua. Era ali que se sentia mais gente, mais humano, mais idiota, mais população.

Olhou para o chão e começou sua principal diversão diária: chutar objetos inanimados.

Uma lata, um carrinho de criança, uma bola, bosta de cachorro, bosta de cavalos (ambas secas, é claro), folhas secas, pontas de cigarros, maços de cigarros, papéis, e tudo mais...

Ele se divertia com o lixo das ruas. Era nojento e sórdido, mas como era bom!

Chegou ao Ponto de Ônibus e começou a observar as pessoas. Ele era um especialista na natureza íntima dos usuários do transporte coletivo.

Primeiro viu aquele homem de seus 30 anos, carrancudo, vestido de calça jeans e camiseta verde escura, carregando papéis e com um olhar de alguém que estaria indo cometer suicídio. Era provavelmente aquele ser humano normal que está indo pagar alguma conta atrasada em algum Banco ou em algum órgão público. Coisas do cotidiano!

Depois olhou mais para a direita e viu uma moça de seus 17 anos, bonita, carregando livros, com o olhar perdido. Deveria ser uma estudante de segundo grau que estava indo fazer um trabalho em grupo ou indo a uma aula daquelas de reforço. Tinha jeito de ser daquelas meninas que sabem tudo sobre o cantor número um no Ibope, mas se perguntarem para ela algo como um fato recente da política, ela simplesmente ignora o interlocutor e sai assobiando.

Olhou em volta e viu uma velha de uns mil anos. Devia ser tão velha quanto o próprio Tempo. Estava olhando para o chão e mastigava algo. A velha começou a falar com a vizinha e ele pôs-se a escuta:

- Olá Chica.E o seu neto?

- Levei ele na Escola hoje, você sabia que ele está cursando o Científico?

Já repararam como os idosos falam das pessoas atuais com termos e nomenclaturas antigos? Ele achava isso maravilhoso...

Um ônibus aparece lá longe e a velha “número um” lhe pergunta:

- Qual é esse?

- É o vinte e dois, vai para o Centro – responde Ele, gentilmente.

- Quero ir para a Rodoviária. Posso pegar esse?

- Claro. Todos os ônibus passam pela Rodoviária.

O ônibus parou.

Sobem. Ele e mais umas vinte pessoas.

Para na roleta. No banco do cobrador estava uma moça de seus doze ou treze meses – pelo menos assim lhe pareceu – mascando um chiclete aroma morango misturado com café. Não era totalmente desagradável, mas o deixou tonto.

Deu o dinheiro e passou. Não ganhou nem um sorriso. Parecia que ele estava passando a roleta para entrar na casa da cobradora.

Por uma grande sorte encontrou um banco vazio.

Sentou-se. Ao lado dele, no banco perto da janela, havia uma senhora com uma criança de colo, daquelas que gritam estridentemente durante todo o trajeto do ônibus. Ele teve vontade de colocar um esparadrapo naquela buzina em forma de criança ou de jogá-la fora do ônibus.

O ônibus começou a se mover.

Ele passou, então, a verificar as fisionomias dos passageiros do ônibus. Tinha como hábito observar os passageiros e deduzir qual a profissão e para onde estava indo cada um deles. Ajudava passar o tempo.

Aquele senhor de pele morena, que usava bigode, obviamente estava indo para o trabalho, deveria ser encanador ou pedreiro. Estava sujo e cheirava muito mal. Era lógico que estava indo para uma obra.

O casal logo à frente estava provavelmente voltando de uma exaustiva viajem. Estavam carregados de malas e falavam sobre paisagens e lugares.

Ele começou a escutar a conversa do casal:

- Precisamos levar as fotos para minha mãe ver – comentou a moça.

- Tá, mas não deixa com ela senão ela vai perder como fez da outra vez – respondeu o rapaz.

- Meu bem, foi você que largou as fotos lá e esqueceu de ir buscar. Ela acabou jogando fora – disse a moça.

- Jogou fora? E você acha isso normal? – perguntou o rapaz com uma tremenda cara de espanto.

- Claro, as fotos estragaram – respondeu a moça.

- Estragaram? O que ela fez? Jogou as fotografias na máquina de lavar ou colocou no microondas? – perguntou o rapaz, bravo.

- Por que você sempre quer pôr toda a culpa na minha mãe. E se ela jogou fora? O que é que tem? – pergunta a moça, se exaltando.

- É engraçado, se fosse eu quem tivesse jogado provavelmente você pediria o divórcio. Mas, como é a sua mãe... - respondeu o rapaz, irônico.

- É claro. Se você jogasse, seria falta de amor – disse moça, mais controlada.

- E se fosse meu pai? – perguntou o moço.

- Também não haveria problema – respondeu a moça.

- Mentira – gritou o rapaz, levantando-se – se fosse o meu pai, você iria fazer a mesma coisa que você fez quando ele jogou aquela sua calcinha no lixo.

- Aquela calcinha era importada. Minha tia trouxe da França – respondeu a moça, quase aos berros.

- Uma calcinha importada é mais importante para você que as fotos da nossa viajem? Isso sim é falta de amor. Você gosta mais de uma calcinha do que das fotos da nossa viajem? - berrou o rapaz.

O casal estava gritando tanto que a criança ao lado dele parou de gritar e começou a observar, quieta, o desenrolar da briga. Aliás, o ônibus todo estava observando a briga. Todos pararam de conversar e estavam atentos ao que o casal falava.

A moça retrucou:

- Mas não é só pela calcinha que eu brigo com seu pai.

- Não, claro que não. Você reclama quando ele coça o nariz, quando ele deixa a toalha molhada em cima da cama dele, quando ele deixa a porta do banheiro aberta, quando escova os dentes, e por mais umas duzentas coisas idiotas – respondeu o rapaz, muito alterado.

-- Seu imbecil, e aquele dia que ele estava urinando e deixou a porta aberta. Nós tínhamos visita, lembra? – perguntou a moça.

Essa última pergunta fez com que todos no ônibus ficassem olhando para o casal. Parecia até que estavam vendo a decisão de uma Copa do Mundo ou a deflagração da Terceira Guerra Mundial.

-- As visitas eram aquelas minhas amigas do serviço. Elas já conhecem meu pai há mais de dez anos e sabem o jeito dele – respondeu o rapaz.

Nisso o ônibus pára.

-- É o nosso – diz ela.

-- Vamos, mas não vai ficar falando merda agora pro meu pai, tá? Se você falar eu vou direto para o bar encher a cara - ameaçou o rapaz

-- Vou pensar – respondeu a moça.

O casal desceu.

Tinha sido uma briga boa. Nota 8,5. Dificilmente Ele irá ver outra briga dessas, talvez só daqui a seis ou sete meses. A última briga teve até pancadaria e o motorista foi obrigado a parar o ônibus por causa do marido bêbado que ameaçava a mulher com um alicate de unha.

Depois da briga vieram as reações dos passageiros.

O ônibus todo começou a comentar sobre a briga: “Você viu a baixaria?”, “Eu acho que o rapazinho é corno“, “Ela é como eu: tem que por o homem no lugar dele”, “Aquele pai do moço deve ser meio doido”, “Acho que ele não dá conta dela”, “Acho que ele é viado “.

É incrível o que uns poucos minutos de briga podem fazer com a mente das pessoas. Ninguém sabe da vida do casal, mas todos já têm opiniões formadas.

O ônibus parou. Ele desceu.

Final da angústia. Agora Ele tinha que atravessar aquelas três quadras até o escritório.

Foi fácil.

Chegando ao serviço, ele cumprimentou o porteiro com o tradicional: “Bom-dia” e foi bater o ponto.

Pronto. O dia de trabalho começou para aquele nobre e capacitado funcionário daquele ridículo e péssimo escritório daquela empresa que fabrica produtos químicos.

Ele tinha uma grande função ali dentro: Redigia todos os memorandos, circulares e demais comunicações entre a Diretoria e os funcionários, ou seja, entre o chefe e os coitados.

Como sempre, na sua mesa havia serviço suficiente para 12 dias de trabalho árduo. Mas, como o trabalhador moderno é um escravo remunerado, informatizado e sindicalizado, o que ele poderia fazer? Reclamar? E o emprego? E as crianças? E a mulher? E o ferro de passar?

Pegou o primeiro bilhete: “Não esqueça de ligar para o Sérgio”.

Não era nada de mais. Era um funcionário que havia sido afastado e queria que Ele pedisse para o patrão que colocasse no mural do escritório um conjunto de poesias que havia escrito

Ele não tinha a menor coragem de falar com o patrão, porque o débil mental do Sérgio não sabe diferenciar uma vírgula de um ponto, ou seja, as poesias dele eram tão mal escritas que pouco dava para compreender o que o maluco queria dizer.

Ele jogou o bilhete fora. Diria ao Sérgio que o chefe achava aquilo desperdício de tempo e de dinheiro, o que não seria de todo uma mentira.

Os outros recados eram coisas rotineiras: “Preciso falar com você sobre aquele caso do fulano”, “Você leu o jornal de ontem? A Alemanha ganhou de dois a zero”, “A Lúcia da recepção tá dando a maior bola pra você”, “Você tem que me pagar aquele livro de auto-ajuda”. “Tenho que pegar o dinheiro até segunda sem falta”

Tendo resolvido tudo aquilo, passou ao trabalho.

O primeiro memorando do dia era sobre o uso de crachás. O Presidente da empresa estava cansado de cobrar do pessoal do Centro de Processamento de Dados para que eles usassem o crachá dentro da empresa. Então, os diretores ordenaram a Ele para que fizesse um aviso informando que se alguém do setor de processamento de dados fosse pego sem o crachá seria suspenso por dois dias.

Depois de ler bem o que tinha que fazer, Ele ligou o computador.

Ele passou então a trabalhar, a fazer o seu serviço. Redigiu o aviso solicitado, e depois fez ainda uma circular e um memorando.

O trabalho dele até que era fácil. O que complicava é que, a cada dois minutos, aparecia um idiota para falar qualquer asneira ou para perguntar a Ele alguma informação sobre este ou aquele memorando.

Parecia que era só Ele que trabalhava ali. Todos os outros ficavam tomando café, contando piadas, lendo jornais, telefonando para a noiva ou namorada, comentando sobre programas de TV, falando sobre futebol, enfim, não trabalhavam.

O único que era cobrado de algo era ele, provavelmente porque o serviço dele era o mais visível. Por exemplo, se algum diretor não visse o memorando, aviso ou a comunicação que havia pedido, o Presidente ou o Diretor Geral davam uma tremenda bronca e até gritavam com Ele. Mas, se um outro funcionário deixasse de fazer o seu serviço por duas horas ninguém falava nada.

O problema, na verdade, era a total desorganização da empresa. A confusão era tanta que a Diretoria, para comemorar o aniversário do Presidente, fez três festas surpresas para ele em um mesmo ano e nenhuma delas era na data correta. Nas três vezes o Presidente recebeu a comemoração como um reconhecimento pela sua excelente gestão.

Na empresa havia um acúmulo monstruoso de papéis, livros, formulários, talões, dossiês, pastas, e mais uma dúzia de itens sem a menor serventia. Uma vez, mandaram que os químicos do Laboratório da empresa fizessem uma pesquisa bem ampla sobre um produto mencionado na capa de uma revista especializada, mas, devido à desorganização total da empresa e ao número exagerado de revistas, foi enviada para o laboratório uma revista pornográfica com uma foto muito “interessante” na capa. O chefe do laboratório protestou, mas até hoje ninguém soube de quem era a revista, pois, segundo a Diretoria, a empresa não faz assinatura de revista desse gênero. A empresa talvez não, mas os diretores, quem sabe?


A confusão era tanta que havia, em uma mesma pilha de papéis, documentos internos da empresa e revistas de mulheres nuas. Aquela empresa parecia muito com uma livraria ou com uma banca de jornal. Se você procurasse, encontraria tudo: livros espíritas e evangélicos, milhares de Bíblias, revistas femininas, todo tipo de revista pornográfica, enciclopédias, cópias de contratos e escrituras de pessoas desconhecidas, fotos, listas de compras de supermercado, catálogos, inúmeras mensagens de auto-ajuda, revistas de palavras cruzadas, receitas, fórmulas químicas, livros de química, apostilas dos mais variados cursos, piadas, desenhos, e outras coisas parecidas.

A Diretoria nem reparava nisso e nem poderia, pois eram três vezes mais desorganizados. Na sala do Diretor Geral, por exemplo, não há como se encontrar qualquer documento, pois existem dois armários e duas escrivaninhas abarrotadíssimos de tudo o que se possa pensar. O Diretor não arruma a sala há pelo menos uns cinco anos.

Era nesse ambiente estranho em que Ele trabalhava.

Sem que Ele notasse, já se passara todo o período da manhã e já era hora para sair para almoçar.

A empresa mantinha um restaurante próprio que fazia pratos que, embora fossem horrorosos, matavam a fome. O funcionário se servia o quanto queria e pagava um valor único, o que não era lá muita vantagem, porque a comida era ligeiramente desagradável.

Os funcionários faziam fila e pegavam o quanto queriam dos pratos que eram servidos. Para o almoço daquele dia, estavam servindo: isopor moído (arroz branco, totalmente sem gosto), sopa de pedrinhas (feijão preto, que quase sempre era servido cru), areia (farofa seca e difícil de mastigar), sola de coturno com muita cola e coberto de sangue (bife bem duro coberto com molho de tomate e um queijo muito borrachudo), concreto armado recheado com material orgânico (torta muito dura com recheio de uma carne parecida com a de frango), purê de batatas (não era ruim, mas era muito pesado) e muitas saladas (que ninguém comia porque sempre vinham cheias de terra). Para beber tinham que escolher entre petróleo (café feito há pelo menos duas semanas) ou suco de laranja (que tinha gosto de tudo, menos de laranja). E, por fim, tinha a sobremesa: pão preto (bolo de chocolate que de chocolate só tinha o nome).

Depois de fazer o prato, Ele passou para a sala de almoço. Era uma sala grande, com várias mesas e cadeiras. Seria uma sala muito boa e tranqüila se não fosse a música ambiente.

Foram os Diretores da empresa que tiveram essa idéia maravilhosa de colocar música quando os funcionários fossem comer. O problema é que a Diretoria só trocava o disco de músicas uma vez por ano, o que significava que o funcionário tinha que ouvir mais de duzentas vezes a mesma música. Nesse ano o disco era de Frank Sinatra e Ele já havia decorado a melodia de “Strangers in the Night” mesmo sem saber inglês e nunca ter ouvido Sinatra antes.

No ano anterior, a Diretoria tinha escolhido um disco de Roberto Carlos e, além das músicas tocadas na sala de almoço, Ele passou a ouvir a música “Detalhes” sendo assobiada e cantada por cerca de 80% dos funcionários da empresa o dia inteiro. Nos outros anos foram Ray Coniff, Pavarotti, Beatles, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Chico Buarque e muitos outros.

Essa espécie de tortura psicológica fazia a pessoa ter ódio do cantor, conjunto ou músico que estivesse cantando ou tocando. Se o funcionário gostasse o artista teria um ano bom, mas, se não gostasse, seria torturado um ano inteiro.

Apesar de não conhecer muito bem Frank Sinatra, Ele até que gostou da voz do cantor e da melodia da música, o que fez com que esse ficasse menos aborrecido trabalhando.

Pontualmente a uma e meia da tarde tocava a sirene para todos voltarem aos seus postos de trabalho. Era um som estridente e irritante. Todos os funcionários xingavam o sinal de entrada: “Esse som do cacete....”
“Já ouvi, corno “ “ Enfia esse apito no...” “ Vai assobiar para tua vó”.

Esses três fatores (a comida, a música da sala de almoço e a sirene) faziam com que os nossos bravos operários entrassem para o trabalho com a mesma vontade com que os judeus entravam na câmara de gás na Segunda Guerra Mundial. As fisionomias eram de quem estava indo para um enterro e não de quem voltava para o trabalho.

Ele voltou para o escritório e leu alguns novos bilhetes: “Não esqueça de me mandar aquele memorando do dia 15”, “Redija o memorando que o Diretor de Esportes pediu” “Escreva a circular que o Gerente de Vendas pediu”.

Ele ainda não tinha entendido qual era o motivo para a existência de um Diretor de Esportes. Afinal, era uma indústria química ou um clube de futebol? Por que então não criamos o Diretor Clínico? E o Diretor Musical? E Diretor de Palco? Era essa falta de bom senso que Ele não entendia. Será que era só Ele que enxergava isso?

Mas, trabalho é trabalho, demissão é demissão e justa causa é justa causa. Tinha que prosseguir. Foi ao primeiro trabalho.

- Meu amor, tudo bem?

Ouviu, mas não compreendeu. Quem seria?

- Sou eu, lembra?

Era Lúcia, a recepcionista que foi promovida ontem a Secretária do Diretor de Finanças. Nessas horas Ele se perguntava: Por que eu casei?

- Está muito ocupado? – perguntou Lúcia

- Não – respondeu Ele, sorrindo para ela.

Ele observava aquelas coxas bem grossas, aquelas nádegas bem sensuais, aqueles seios...

-- Tem certeza? Você está muito pensativo – constatou Lúcia

-- Estava pensando em como você fica cada dia mais bonita – disse Ele, galantemente.

-- Bobagem sua, não sou bonita. Você faria um favor para mim? – perguntou Lúcia alegre.

-- Claro, meu anjo – respondeu Ele, sorrindo.

-- Pode fazer esse memorando para mim? Meu chefe me pediu, mas eu não sei fazer – entregou umas folhas para Ele e acrescentou – é muito grande e eu tenho que sair mais cedo hoje. Tenho um compromisso muito sério em casa, com meus pais.

-- Faço hoje mesmo – disse Ele.

-- Mas, você vai ter que ficar até mais tarde. Tudo bem, mesmo? – perguntou Lúcia e acrescentou – Não vai poder voltar atrás.

-- Sem problema. Deixa que este seu criado cuidará do assunto – respondeu Ele, sorrindo e acrescenta – Eu faço isso por prazer.

-- Um dia eu te pago a gentileza – disse Lúcia.

“Espero que sim” – pensou Ele, mas disse apenas.

-- Tá, um dia.

Lúcia foi embora.

Ele ficou pensando como seria uma noite com aquele mulherão. Será que ela é devassa? Será que ela faz tudo? Ele teria que cobrar a gentileza, pois já haviam lhe dito que ela estava interessada nele.

Ele nunca teve experiências fora do matrimônio. Somente antes, mas quando era jovem e sem experiência. Agora, casado, Ele sonhava em possuir uma moça bonita e escultural como Lúcia sentir como seria o sexo com uma outra mulher que não fosse a sua.

Ele não tinha nada contra o sexo com sua mulher, mas tinha aquela antiga fantasia de fazer sexo com uma outra mulher, mais agressiva, mais tarada, mais sensual. Lúcia seria uma boa idéia.

Começou a fazer o memorando. Caprichou. Recorreu até a termos difíceis e expressões em inglês e, até mesmo, em latim. Leu e releu o memorando umas cem vezes.

Ele saia do serviço às seis da tarde, mas, quando terminou o memorando, já eram quase cinco. Isso significava que teria que trabalhar até mais tarde, o que era normal. Nada que assustasse sua doce esposa.

Continuou trabalhando nos memorandos ordenados pelo chefe, quando o Souza, do Centro de Processamento de Dados, veio conversar com Ele.

- Fala ai, burro de carga. Vai trabalhar até quando? – perguntou Souza

- Não muito, só vou terminar isso aqui – respondeu Ele, sem tirar os olhos do computador.

- Você trabalha e perde tempo, cara. Para você ver, a Lúcia da recepção até desistiu de você. Ela está até namorando outro – disse Souza.

Ele parou e observou bem Souza.

- Você não sabe de nada. Ela está trabalhando agora como secretária do Diretor de Finanças – disse Ele, rindo.

- Eu sei. É com ele que ela está namorando. Foi por causa do namoro que ela ganhou o emprego, bobinho – disse Souza, entre risadas.

Ele ficou olhando para o nada.

- É. Fica ai com o seu trabalho enquanto os dois se divertem na casa dos pais dela. Ela o convidou para ir lá comer uma Lasanha especial que a mãe dela faz e ele aceitou – disse Souza e acrescentou – Eu vou embora para casa e depois vou sair e fazer muito sexo com muita liberdade.

Souza saiu correndo e Ele se sentiu como o mais idiota dos idiotas.

Ele ficou com muito ódio. Precisava se vingar de Lúcia.

A única solução que via era refazer o memorando e enche-lo de erros de português, deixando o texto totalmente sem sentido.

O raciocínio era o seguinte: Como a Lúcia pediu para Ele fazer o memorando, ela provavelmente estava supondo que o texto seria maravilhoso o suficiente para agradar o namorado e ganhar a confiança dos demais diretores. Com um texto sem sentido e cheio de erros, o namorado e os diretores irão demiti-la sumariamente, sem maiores explicações.

Ele fez o memorando de tal forma que não dava para saber se era um memorando ou uma carta de despedida. Os erros eram grosseiros e aberrantes e estavam por todo o texto.

Ele sabia que a funcionária acabaria sendo mandada embora. O Diretor de Finanças odiava erros de português e lia todos os documentos que tinha que assinar. Era um professor de português aposentado e não tolerava erros de ortografia, nem mesmo por parte da mulher. Chegou a se separar dela por causa disso.

Depois de deixar o memorando na mesa da secretária, resolveu ir embora. Já havia se cansado de trabalhar e tinha sido feito de idiota por uma secretária sem vergonha.

Bateu o ponto. Eram sete e meia da noite.

Antes de se dirigir ao ponto de ônibus, que nesta hora da noite deveria estar lotado, Ele resolveu fazer aquela parada tradicional no bar do Zeca. Nada melhor havia que terminar um dia de trabalho cansativo e depois sentar num banco de bar e tomar uma cerveja gelada.

Não era todo dia que Ele conseguia ir ao bar. Sempre havia contratempos: pegar um doce na padaria, passar na casa do cunhado para cobrar a devolução da furadeira, ir ao aniversário de um dos milhares de amiguinhos dos filhos e outras tantas obrigações sociais inadiáveis.

O bar do Zeca era aquele típico estabelecimento horroroso e fétido, mas era freqüentado por todos os seus amigos e colegas de trabalho. Portanto, o melhor era agüentar e relaxar.

- Aquela especial, bolão – disse Ele.

Bolão era o apelido de um dos funcionários do bar, que era gordo, indolente e extremamente lento. Você pedia uma cerveja em maio e ele só lhe trazia em fevereiro, isso se você tivesse muita sorte.

- Traz logo. Não vou ficar aqui a noite toda vendo você andar até a geladeira, né bolão?

- Tá bom. Está aqui...

Enquanto Ele esperava o abençoado e precioso líquido de final de expediente, alguns colegas começavam a chegar e a pedir a sua respectiva bebida. Aos poucos iam conversando sobre os assuntos do dia, sobre os problemas da empresa e a hora passava lentamente.

- Vamos jogar?

Essa pergunta era do Jaílson, um dos motoristas da empresa, que era viciado em bilhar e todo santo dia o convidava para uma partida. Compraram algumas fichas com o Zeca e foram jogar.

- Acerta a sete

E o jogo ia se desenrolando.

Sempre no meio do jogo surgiam naquele bar algumas figuras estranhas que atrapalhavam o andamento do jogo: o bêbado Walcir e a prostituta Sandra.

Walcir era um bêbado já conhecido, que vivia dizendo para todo mundo que era advogado e que trabalhava em Brasília. Quando chegava, queria comandar o jogo de bilhar, dizendo que havia competido em um campeonato mundial e outras loucuras parecidas. Seus conselhos eram ridículos e, na maioria das vezes, ele falava tanto que fazia os jogadores errarem.

Já Sandra conseguia distrai-los porque era uma mulher muito atraente e ficava mostrando suas qualidades para alguns colegas solteiros e desimpedidos, o que prejudicava o bom andamento do jogo.

Depois de três partidas, Ele resolveu ir embora. A mulher iria fica brava de ele se demorasse mais...

A volta para casa, no ônibus, foi uma verdadeira tortura. São cerca de seiscentas pessoas apertadas em uma lata de sardinha (é essa, ao menos, a impressão que se tem). Além da pressão corporal, havia ainda aquele odor nauseabundo característico que é emanado das axilas de alguns dos passageiros. O efeito de tal odor era quase anestésico e Ele aproveitava sempre para dar uma boa cochilada (de preferência quando conseguia algum lugar para se sentar), o que fez com que, muitas vezes, acordasse somente dois ou três pontos depois do seu.

Ao descer do ônibus, respirou profundamente (precisava de oxigênio) e dirigiu-se para casa, mas, no meio do caminho, lembrou de ir à farmácia comprar remédio para gripe: Era para o filho maior.

Chegou em casa.

- E ai? Comprou o remédio? – disse a mulher

- Boa Noite, o meu dia foi chato e cansativo – respondeu Ele jogando a embalagem no sofá – será que você poderia ser amável de vez em quando...?

- Desculpe. Você está muito cansado? – disse a esposa com ironia.

- Estou cansadíssimo, por que? – respondeu ele, estranhando a reação da mulher.

- Jogou muito bilhar e bebeu bastante, né? Seu bafo te compromete – disse a mulher rindo

- É crime? – perguntou

- Ainda não

- Bom, se não é crime vou subir, tomar um banho e aguardar o jantar.

Ele ia se dirigindo para o quarto quando ela diz:

- Calma ai moço, aquele seu amigo anormal ligou, quer lhe contar algo – disse ela sorrindo.

- Deus, o que eu fiz para merecer isso? Foi o bilhar? – gritou ele, como se estivesse falando com os céus.

- Ele disse que ligará daqui... - ela consulta o relógio –...em cinco minutos

- E se eu me matar antes disso? – pergunta ele

- Não acho boa opção – respondeu ela – você tem uma obrigação aqui comigo, lembra-se?

-- Tá bom, vou cumprir o nosso contrato até o fim – brincou – decidi não meter uma bala na cabeça, até porque não tenho arma em casa...

- Pare com essas idéias suicidas antes que eu mesma te mate – respondeu ela.

- Bom, é melhor eu fugir e me trancar no banheiro – disse isso e deu um beijo na mulher.

Ele até gostava dessas brincadeiras ao chegar em casa. Era salutar. Mas a ligação do seu amigo azedou um pouco a sua chegada em casa. Aquele amigo sempre conseguia triturar sua paciência e o infeliz ainda ia ligar para novamente lhe contar sobre seu divórcio. Que coisa mais chata!

Antes do banho Ele aguarda a tão esperada ligação.

Toca o telefone:

- Fala – atendeu já com aquele tom de ódio sufocante.

- Sou eu... - a voz parecia vir de Estocolmo

- Eu sei. Fale

- Nós voltamos... - disse o amigo, sem o menor ânimo.

- Como? Voltaram?

- Sim, voltamos...

Ele não sabia se aplaudia ou se vaiava

- Bom...

- Mesmo?

- Claro

- Graças a Deus. Eu precisava mesmo do seu apoio porque eu não sabia se continuava com o casamento depois disso tudo. Depois de ouvir a sua aprovação, eu tenho certeza que dei o passo certo. Vamos tentar novamente. Você é um cara muito legal, um amigão de verdade...

- É, eu sei – respondeu Ele, sem saber bem o que dizia.

- Vamos ai visita-los essa semana. Tudo bem?

- Acho que não há problema.

- Depois combinamos - falou o amigo - ....tchau

- Boa sorte...

Amigão? Aprovação? Quem disse que Ele era amigo daquele pobre diabo? E quem disse que Ele era um cara legal?

- Como foi? Ele vai se matar hoje ou amanhã? – perguntou a mulher

- Prepare-se, tenho duas noticias para te dar: uma ruim e outra péssima.

Ela senta-se em uma cadeira e diz:

- Manda as duas de uma vez só

- Eles voltaram e vão nos visitar essa semana.

Ela fica muda

- Tá vendo, foi castigo... - disse ele

- Aquele imbecil e a mulher covarde? – perguntou ela

- O casal simpatia, recém reunido e totalmente indeciso. Ele diz que fui eu quem o apoiou. Chegou até a me chamar de amigão...

- Essa não – falou ela, pondo a mão na cabeça – isso significa um laço mais próximo.

- O futuro nos aguarda...

- A sua idéia de suicídio não é tão má, afinal... - disse ela

- Olha a minha responsabilidade agora. Eu sou um exemplo para ele. O que acontecerá a ele se nós nos matarmos?

- Tá bom, vamos ser boas pessoas e ajudar um casal em ruínas.

- Deus deve estar dizendo: “Esses dois eu ponho no paraíso com direito a hotel cinco estrelas. Já sofreram demais ajudando aqueles dementes...”.

Depois de todas essas más notícias Ele foi tomar banho e reuniu-se com a família para o jantar. Ele engole dois pedaços de carne e toca a campainha.

Tensão

- Será que são eles? – perguntou Ele

- Será que é o demente do seu amigo, comunicando outra separação? – perguntou ela.

A tensão foi desfeita. Era apenas o cunhado pedindo um empréstimo para comprar dois cachorros da raça Fila.

- Por que dois cachorros? – perguntou Ele

- São as crianças... - diz o cunhado, meio sem graça.

- Exatamente por isso. Não seria melhor um...?

- Eles querem dois...

- Então, por que não compra dois cães menores?

- Não, tem que ser Fila.

Ele acabou desistindo de tentar convencer o maluco do cunhado a desistir da compra e acabou lhe passando um cheque com o que sobrou da sua poupança. Ele teve que se conformar, pois sabia que teria que esperar umas dez ou onze encarnações para poder receber o dinheiro de volta. Mas, paciência...

Depois do jantar, ele foi assistir TV. Mas, o sono veio forte e Ele subiu, vestiu o pijama e desabou na cama. Desabou na cama ciente que sexo não iria ter nesta noite, porque sexo era somente de quinta e Domingo. Mas, nada tinha a reclamar.

Olhou para o teto e lembrou-se do que tinha passado no escritório por causa da Lúcia, aquela secretária sacana, e do troco que ela mereceu. Ficou feliz então por saber que tinha uma mulher fiel e compreensiva - uma pessoa honesta - e que sua vida era boa.

Um dia de trabalho e muito cansaço se foi. O que o destino aprontou para Ele amanhã? Mais amigos com problemas? Mais secretárias gostosas querendo dar...........golpe? Não importa, ele superaria tudo e daria a volta por cima. Mas,...

O sono veio.

E assim foi mais um dia na vida de um trabalhador comum.

Nenhum comentário: